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II SÉRIE-A — NÚMERO 97

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dessas formas de concretização da morte decorre, numa linha de total sobreposição de situações, da

introdução no nosso ordenamento jurídico, como elemento desencadeador da morte a pedido do próprio (sob

o controlo do Estado), dos requisitos desse evento contidos no artigo 2.º do Decreto n.º 109/XIV, estando

sempre em causa investir o Estado – ironia das coisas: por força do nosso direito à «autonomia individual» e

da nossa «dignidade» enquanto pessoas – do poder de fixar circunstâncias de elegibilidade de alguém para a

concretização do propósito de pôr fim à sua vida, que passa a valer como fator de legitimação do Estado,

mediante um procedimento especial, a controlar a verificação dessas circunstâncias e a participar ativamente

na consecução desse resultado.

Constitui, pois, objetivo precípuo do diploma aprovado pelo Parlamento a opção de legalizar, em certas

condições, a prática da eutanásia ativa, sendo que com a expressão eutanásia ativa estão em causa os casos

em que o «médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito mas sob supervisão médica»

(nas palavras do artigo 8.º, n.º 2, do Decreto) realiza o último passo causal diretamente determinante da morte

do paciente, administrando-lhe os fármacos letais, como também estão em causa – sem que, em rigor,

signifiquem algo de substancialmente diferente da eutanásia, e até de a podermos qualificar como ativa – as

situações em que esses profissionais realizam o penúltimo passo causal da morte, conducente à

autoadministração do fármaco letal pelo próprio paciente. Em qualquer dos casos – embora sempre possamos

«jogar» com as palavras e os conceitos – existe, por banda dos mesmos profissionais, o controlo da situação

diretamente causal da morte do paciente.

A perspetivação desta situação pelo lado do Direito Penal, antepondo uma consequência à causa,

expressa tão-somente um deliberado viés na abordagem do tema central, a eutanásia, ele próprio, aliás,

referenciado no Decreto através de uma expressão indireta – antecipação da morte medicamente assistida –,

não isenta até de ambiguidade (quiçá intencional e tributária de algum propósito persuasivo). É que existem na

prática médica procedimentos clínicos – coisa que a causação intencional e direta da morte, mesmo realizada

por um médico, não é – que podem envolver, designadamente num quadro de duplo efeito, algum tipo de

antecipação da morte1, mas que em nada correspondem ao que está em causa na eutanásia ativa.

Ou seja, pressuposto «[…] que a construção dogmática do conceito de crime é afinal […] a construção do

conceito de facto punível»2, regulamenta-se a eutanásia – adjetiva-se o ato de produzir, em ambiente médico,

a morte de alguém a seu pedido –, afirmando-se a exclusão, relativamente à situação que a consubstancia, da

punibilidade («[q]uem matar outra pessoa é punido […]», artigo 131.º do Código Penal), no quadro de um

procedimento administrativo especificamente destinado, em última análise, a esse resultado, sendo certo que

a punibilidade do facto que se expressa num dos resultados possíveis a culminar tal procedimento (autorizar a

morte de alguém a seu pedido), não fora a opção de legalizar a prática da eutanásia em certas condições,

permaneceria, digamo-lo assim, sob a alçada do Direito Penal. Com efeito, isso sucederia nos casos de

privilegiamento que tematicamente são próximos da eutanásia ou da ajuda ao suicídio (dois dos tipos visados

pelo artigo 27.º do Decreto n.º 109/XIV), como é o caso do homicídio a pedido da vítima (artigo 134.º do

Código Penal), que não deixa de «[reproduzir] o núcleo essencial do ilícito típico do crime de homicídio (‘matar

outra pessoa’)»3. Aliás, se naqueles casos, no «pedido da vítima» (para ser morta ou ajudada a morrer), se

puder vislumbrar uma qualquer expressão de autonomia e autodeterminação pela morte, a irrelevância desse

«consentimento» como causa de justificação (ou de exclusão de ilicitude) não deixa de traduzir a cedência

daquela perante o valor protegido da vida humana, enquanto bem jurídico no seu todo indisponível – e que o

legislador, a pretexto da existência do mesmo «consentimento», do mesmo «pedido», vem inverter, definindo

ele próprio as «condições» – da prática da eutanásia – em que a vida humana passa a ser disponível,

condições essas que, desse modo definidas, não constituem, em rigor, expressão de qualquer autonomia.

É, pois, a legalização da eutanásia – o propósito legislativo que se materializou na aprovação do Decreto

n.º 109/XIV, designadamente por via do artigo 2.º deste –, a questão central que confronta a inviolabilidade da

vida humana, que com uma ênfase muito particular é afirmada no artigo 24.º, n.º 1 da CRP. E é nessa

perspetiva que a opção legislativa expressa nesse Decreto deve ser, desde logo, abordada.

2.1. O Direito à vida, enunciado na epígrafe desse artigo 24.º, não foi criado pelo texto constitucional, não 1 Rui Medeiros, Jorge Pereira da Silva, comentário ao artigo 24.º, in Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I,

2.ª ed. revista, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2017, pp. 389-390. 2 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, 3,ª ed., Tomo I, Gestlegal, Coimbra, 2019, p. 275.

3 Manuel da Costa Andrade, anotando o artigo 134.º, inComentário Conimbricense do Código Penal, dirigido por Jorge de Figueiredo

Dias, Tomo I, Parte Especial, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 96.