16 DE MARÇO DE 2021
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existindo, identitariamente, em função da maior ou menor expressividade que o seu reconhecimento – porque
de um reconhecimento ou consagração de um valor preexistente se trata – assuma nesse texto. Essa
expressividade – a qual, não obstante, é intencionalmente forte na Constituição da República Portuguesa – o
que faz é reconhecer algo que lhe é anterior, um princípio essencial do Direito, um arquétipo civilizacional4,
cujo significado profundo projeta dimensões valorativas mais amplas que as diretamente sugeridas pela
simples consideração do seu exato conteúdo normativo, quando este é procurado desfasadamente da sua
essência5.
Aliás, essa precedência do valor intrínseco da vida humana relativamente ao seu reconhecimento ou
consagração num texto constitucional revela-se, desde logo, por via da sua inclusão, no quadro das normas de
Direito Internacional, nos princípios de jus cogens que, segundo a doutrina, estando «[…] para além da
vontade ou do acordo de vontades dos sujeitos de Direito Internacional […,] desempenham uma função
eminente no confronto de todos os outros princípios e regras [e] têm uma força jurídica própria, com os
inerentes efeitos na subsistência de normas e actos contrários»6 ou «[…] uma posição e estatuto superior em
relação às demais normas da comunidade internacional […]» [rank and status superior to those of all other
rules of the international community]7. Valerá pois, quanto ao direito à vida, mutatis mutandis, a ideia de que
«[…] o ‘jus cogens’ […] constitui uma ‘qualidade’ particular (imperativa) de certas normas, que podem ser de
origem seja costumeira, seja convencional […]»8 podendo afirmar-se, também, que as normas substantivas de
Direito Internacional dos Direitos Humanos que consagram o direito à vida se integram «no bloco qualificado
das normas de ‘ius cogens’»9.
2.1.1. Não obstante, o legislador constituinte em 1975 – sendo que o texto do artigo 24.º (até 1982, artigo
25.º) se mantém inalterado – pretendeu destacar uma força significativa especialmente qualificada – «[a] vida
humana é inviolável.» (frase na qual vislumbramos um ponto de exclamação latente) –, reforçada pela
afirmação incondicionada contida no n.º 2 – «[e]m caso algum haverá pena de morte.» –, procurando-se
através deste, algo mais do que a tradicional referência, nas Constituições portuguesas desde 1911, à
proibição da pena de morte, afastar operações de redução da força da afirmação contida no n.º 1, através da
projeção do que, a par da guerra, historicamente identificava, no pensamento judaico-cristão, uma exceção
ao imperativo moral de não matar10
.
O que ora interessa ter presente é que a formulação do que viria a corresponder ao artigo 24.º, n.º 1,
apresentou uma originalidade apelativa, que recolheu o voto unânime dos constituintes11
, gerando uma
4 «[h]á que mergulhar mais fundo, para descobrir a essência das regras adoptadas e aplicadas duma maneira uniforme nas várias ordens
jurídicas, que é como quem diz, para descobrir a essência ou arquétipo jurídico escondido na variedade das suas representações positivas, para reconduzir, em suma, essas regras ‘aos seus aspectos mais gerais e únicos verdadeiramente universalizáveis» (José Manuel Moreira Cardoso da Costa, Os Princípios Gerais de Direito como Fonte de Direito Internacional, Coimbra, 1963, p. 86, sublinhados no original). 5 «Quando uso o termo ‘arquétipo’, refiro-me a uma disposição particular num sistema de normas que tem um significado que vai além do
seu conteúdo normativo imediato, uma significação que deriva do facto de ela resumir ou tornar vivo, para nós, o sentido, o propósito, o princípio ou a política de toda uma área do direito» [Jeremy Waldron «Torture and Positive Law: Jurisprudence for the White House», in Columbia Law Review, Vol. 105, No. 6 (Oct., 2005), p. 48]. 6 Jorge Miranda, Curso de Direito Internacional Público, 6.ª ed., Princípia, Cascais, 2016, p. 125, que enquadra o direito à vida no
princípio, atinente à pessoa humana, da garantia dos direitos inderrogáveis enunciados no artigo 4.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (idem, p. 132); no mesmo sentido, considerando pertencerem já ao ius cogens pelo menos os mais importantes dos direitos e das liberdades consagrados na DUDH e nos Pactos de 1966, André Gonçalves Pereira, Fausto de Quadros, Manual de Direito Internacional Público, 3.ª ed., reimpr., Almedina, Coimbra, 1995, p. 284; no sentido de deverem ser consideradas normas de Ius Cogens as normas costumeiras de Direito Internacional Público dos Direitos Humanos, Eduardo Correia Baptista, Direito Internacional Público, Vol. I, 1998 (reimpr.), AAFDL Editora, Lisboa, 2015, p. 171 e Direito Internacional Público, Vol. II, 2004 (reimpr.), AAFDL, Lisboa, 2015, pp. 431 e ss., em especial, quanto ao direito à vida, pp. 439-440. 7 Antonio Cassese, International Law, 2.ª ed., Oxford University Press, Oxford, 2005, p. 199.
8 Ngyuen Quoc Dinh†, Patrick Daillier, Mathias Forteau, Alain Pellet, Droit International Public, 8.ª ed., L.G.D.J, Paris, 2009, p. 225.
9 Assim, Manuel Diez de Velasco, Instituciones de Derecho Internacional Público, 17.ª ed., Tecnos, Madrid, p. 650.
10 Ao mandamento «não matarás» consagrado no Livro do Êxodo (20:13) e repetido no Livro do Deuteronómio (5:17) (cfr. Nahum M.
Sarna, The JPS Torah Commentary, Exodus, The Jewish Publication Society, Philadelphia, Jerusalem, 1991, p. 113; Jeffrey H. Tigay, The JPS Torah Commentary, Deuteronomy, The Jewish Publication Society, Philadelphia, Jerusalem, 1996, pp. 70-71; «The Christian Judge and the Taint of Blood: The Theology of Killing in War and Law, James Q. Whitman, the Origins of Reasonable Doubt. Theological Roots of the Criminal Trial, Yale University Press, New Haven, Londres, 2008, pp. 28-49). Permanece a pena de morte, para quem a aceite, como um paradoxo relativamente à inviolabilidade da vida humana [veja-se a «complexa» tentativa de afastamento desse paradoxo empreendida por Neil M. Gorsuch («[t]o be clear from the outset, I do not seek to adress publicly auhorized forms of killing like capital punishment and war. Such public acts of killing raise unique questions all their own […] I seek only to explain and defend an exceptionless norm against the intentional taking of human life by private persons.»), The Future of Assisted Suicide and Euthanasia, Princeton University Press, Princeton, Oxford, 2009, p. 157 e p. 272, nota 2]. 11
O Deputado constituinte, José Ribeiro e Castro, em texto de opinião recente (02/02/2021), publicado no jornal onlineObservador, aludiu à força extraordinária desta fórmula, em comparação com as outras propostas de texto então apresentadas: «[a] generalidade dos projetos de Constituição, em 1975, continha formulações jurídicas habituais na proteção do direito à vida. O projeto do CDS dizia: