16 DE MARÇO DE 2021
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normas imperativas de direito internacional18,19
.
2.2. Esta muito peculiar feição do direito à vida, traduzida em «[apresentar-se] em regra como um direito de
tudo ou nada – no sentido de que não são concebíveis ataques parcelares à vida sem perda dessa mesma
vida […]», torna-o, pela sua própria natureza, «[…] avesso a operações de concordância prática e cujo
conteúdo tende a coincidir com o seu conteúdo essencial […]»20
. Ora, prestar-se muito pouco – ser
intrinsecamente avesso – a operações de relativização do seu conteúdo, reduz fortemente a respetiva
suscetibilidade de acomodação a outros valores (que não oponham o seu próprio valor intrínseco a um mesmo
outro valor21
). Daí que o dever de respeito que quanto a ele a todos é imposto – e ao legislador muito em
particular é exigido – apresente uma expressiva natural propensão à absolutização, gerando quanto a esta
caraterística de alguns direitos, pese embora a ela não corresponder exatamente, uma grande proximidade. É
que, não existindo a este respeito possibilidade de limitação, constitucionalmente expressa ou autorizada, a
viabilidade de um espaço – de uma estreita e excecionalíssima margem – de ponderação radicar-se-á,
enquanto regra geral, numa apreciação a posteriori de concretas situações22
, podendo ser quando muito,
consideradas, todavia, não obstante essa tendencial «imunidade» à apreciação a priori, respostas em concreto
que comportem algum grau de generalização de procedimentos ancorados em fortes intuições morais que
sejam congruentes com o imperativo ético de não matar, e com o grau superior de qualificação da
inviolabilidade da vida humana, quando colocados (quando testados) em situações de tensão que postulem ou
exijam escolhas dilemáticas com algum grau de interferência com esse valor cimeiro. O ponto central destas
questões, e da resposta que a elas fornece uma ética de respeito pelo valor intrínseco da vida humana – o
que, enfim, distingue tais situações daquelas em que a resposta é a eutanásia –, reside na diferenciação,
eticamente significativa, entre o ato de matar e o ato que envolva deixar morrer, fora de qualquer atuação
intencionalmente dirigida a esse resultado, num quadro de luta contra o sofrimento físico.
2.2.1. Com efeito, ser a vida humana inviolável não exclui, desde logo, a legítima defesa (como causa de
exclusão da ilicitude) cujo exercício legítimo pode confrontar o valor vida humana, «[…] como meio
necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de
terceiro» [artigos 31.º, n.os
1 e 2, alínea a), e 32.º do Código Penal], sendo que o exercício desta nem estará
18
Frédéric Sudre, Laure Milano, Hélène Surrel, Droit européen et international des droits de l’homme, 14.ª ed., PUF, Paris, 2019, p. 195 e p. 196 – cf., quanto ao direito à vida, cronologicamente, os artigos 2.º e 15.º, n.º 2, da Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 4 de novembro de 1950; os artigos 6.º e 4.º, n.º 2, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 16 de dezembro de 1966; e, ainda, os artigos 4.º e 27.º, n.º 2, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969. 19
Acresce, também numa ótica internacionalista, que o direito à vida integrava já o «mínimo humanitário garantido» pelo artigo 3.º comum às quatro Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949 que, segundo o Tribunal Internacional de Justiça, contém regras que correspondem a «considerações elementares de humanidade» [caso Estreito de Corfu (Reino Unido c. Albânia), Mérito, 9.4.1949, Recueil, 1949, p. 22, retomado no parágrafo 218 (e parágrafo 215) do caso Atividades Militares e Paramilitares na Nicarágua (Nicarágua c. E.U.A), Mérito, 27.6.1986 Recueil, 1986]. 20
Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª ed., cit., p. 366. 21
«Por vezes é impossível salvar toda a gente. Os políticos têm que tomar decisões que implicam questões de vida ou de morte. O mesmo sucede com os responsáveis por estruturas de saúde. Os recursos nessa área não são ilimitados. Sempre que uma estrutura de saúde é confrontada com a escolha entre alocar fundos à aquisição de um medicamento que se estima salvará X vidas, ou alocá-los a outro que salvará Y, estão os seus responsáveis a ser confrontados, com efeito, com variações, não ficcionadas, do chamado ‘trolley problem’ […]» (David Edmonds, Would You Kill the Fat Man? The Trolley Problem and What Your Answer Tells Us about Right and Wrong, Princeton University Press, Princeton, Oxford, 2014, p. 11; correspondem os ditos «trolley problems» a cenários experimentais de ética aplicada, envolvendo a ficção de dilemas éticos estilizados, que pressupõem, na sua forma mais simples, o sacrifício, num hipotético ramal de linha de comboio, de uma pessoa para salvar um número maior, sendo alguém confrontado com a possibilidade de desviar o comboio para um ou outro ramal, «salvando» ou «condenando» alguém: «[n]a verdade, para um observador exterior, estes curiosos incidentes com comboios podem parecer uma brincadeira inofensiva – uma espécie de palavras cruzadas para ocupantes de longa duração da ‘Torre de Marfim’. Porém, na sua verdadeira essência, tratam da questão de saber o que está certo e o que está errado e qual deve ser o nosso comportamento. E o que é que pode ser mais importante que isso?» – ibidem, p. 12). 22
O que corresponde, quanto à temática aqui em causa, ao caminho apontado por Jorge de Figueiredo Dias: «[…] nos casos – que a medicina afirma serem hoje pouco frequentes – em que o mortalmente enfermo manifeste a sua vontade séria e esclarecida (ou ela se deva presumir, quando aquela manifestação não seja possível) de que ponham termo à sua vida, um acompanhamento compreensivo e humano da morte, aliado a uma terapia da dor tão eficiente quanto possível (mesmo que atinja a natureza de ajuda à morte activa indirecta) conforma uma actuação que, devendo ainda ser considerada como ‘tratamento’, cabe precipuamente na função do médico e tem vantagens de toda a ordem sobre a permissão jurídica, ainda que sob os mais rigorosos pressupostos procedimentais, da ajuda à morte activa directa. […] O que pode, tendo-se isto em conta, ficar ainda para a permissão, ainda que absolutamente excepcional, da ajuda à morte activa directa no plano ‘de lege ferenda’? Em nossa opinião […] que ao preceito sobre o homicídio a pedido se acrescentasse um novo número com a seguinte redacção: ‘O tribunal pode isentar de pena quando a morte servir para pôr termo a um estado de sofrimento insuportável para o atingido, que não pode ser eliminado ou atenuado por outras medidas’.» («Nótula antes do artigo 131.º», Comentário Conimbricense do Código Penal, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Tomo I, Parte Especial, 2.ª ed., cit., pp. 33-34, ênfase no original; texto também publicado na Revista de Legislação e de Jurisprudência – «A ‘ajuda à morte’: uma consideração jurídico-penal» –, Ano 137, março-abril, 2008, n.º 3949, p. 215).