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16 DE MARÇO DE 2021

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Mas não são os cuidados paliativos (artigo 6.º da Lei n.º 31/2018, de 18 de julho) a resposta adequada a

estas situações, e não uma mera hipótese de escolha (artigo 3.º, n.º 5, do Decreto) numa espécie de

catálogo em que a opção do Estado organizar a morte a pedido aparece destacada? E o mesmo não

sucederá com a sedação paliativa (artigo 8.º da Lei n.º 31/2018)? É convicção firme dos signatários da

presente declaração, alicerçada no próprio direito à vida e nos deveres de proteção que dele decorrerem,

que a resposta a qualquer destas interrogações só pode ser positiva. Assim como tal resposta positiva

sempre se afiguraria, numa hipotética ótica de admissibilidade de conflito de direitos ou de ponderação de

diferentes valores – que a indisponibilidade da vida humana e do correspondente direito tomado como um

todo, em qualquer caso, não suscita ou consente –, a única solução de equilíbrio que, precavendo a

eliminação irreversível do bem jurídico em causa, colocaria ainda a ênfase na vida, aliviando a dor e o

sofrimento, físico ou psicológico, ainda que eventualmente sobrevenha um resultado desvalioso – o evento

natural da morte, mas não antecipada. Em qualquer caso, o que nunca configurará uma alternativa – desde

logo porque para tanto não dispõe o legislador de qualquer credencial constitucionalmente válida – é a

autorização ao Estado para fixar critérios, ditos médicos, da medida em que uma vida atingiu um ponto

suficiente de deterioração física que torne «razoável» atender um pedido de ser morto formulado pelo

próprio, conduzindo à sua irreversível eliminação. Se isto corresponde a um novo paradigma da liberdade e

da autonomia individual, não deixa de ser paradoxal que ele se manifeste nesta espécie de apoteose do

paternalismo do Estado, criado e procedimentalizado pelo Decreto n.º 109/XIV.

2.4. Neste contexto – que é o da existência de um enquadramento legal da morte a pedido, referido a um

grupo delimitado por critérios de elegibilidade fixados nos termos decorrentes do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto

n.º 109/XIV – tem sentido, ademais, convocar o plano referencial da dignidade humana (artigo 1.º da CRP),

como princípio-guia conducente a outros valores constitucionais. Exige-se nesse plano, «[…] respeito pela

autonomia, mas também preocupação em face da vulnerabilidade […]»38

. Ora, sendo a manifestação de uma

decisão de ser sujeito a um procedimento de antecipação da morte medicamente assistida inseparável dos

efeitos das condições médicas (de um ‘prognóstico da situação clínica’, nas palavras do artigo 5.º, n.º 1, do

Decreto) que legalmente enquadram esse pedido – aqui, seguramente, «[…] o medo da dependência e da

perda de controle, da incontinência e da demência, enfim, do medo da deficiência [ – ] [e]mbora isso seja

expresso como um desejo de ‘morrer com dignidade’, não deixa de implicar que viver em certas condições é,

per se, uma indignidade»39

. É este, com efeito, o sinal que o Estado a todos dá.

Ora, o plano da decisão individual em que esta questão se suscita expressa motivações subjetivas onde

intervêm as múltiplas razões, muitas delas fonte de inaceitável descaso da ideia de inviolabilidade da vida

humana. A tudo isso soma-se, porém, o sinal que o comportamento do Estado não deixa de expressar

relativamente à condição deficiente, à vulnerabilidade que ela acarreta e à proteção especial que ela exige.

Dir-se-á que isso é matéria de outra legislação, porventura responsabilidade «de outro departamento». Porém,

o que fica da opção aqui em causa é precisamente esse poderoso sinal que se dá, criando uma classe de

pessoas cuja condição física e psíquica depauperada as torna elegíveis num quadro de atuação do Estado

que lhes faculta a opção da própria morte. Não é, aliás, de afastar a inclusão daquelas pessoas, desde logo

aquelas «com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável

e fatal», na noção de pessoas com ‘deficiência’, sendo aquelas elegíveis para antecipar a sua própria morte40

.

Vale esta situação, pois, por via do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV, também, para além da ofensa

direta ao artigo 24.º, n.º 1 da CRP, como desvirtuamento do princípio da dignidade da pessoa humana, por

referência aos artigos 1.º, n.º 1 e 13.º, n.º 1, da CRP.

2.5. A admissão da eutanásia – e particularmente a admissão nestes termos – conduz inelutavelmente ao

seguinte encadeamento de asserções caraterizadoras de um novo paradigma de «convivência» com o

princípio da inviolabilidade da vida humana decorrente do artigo 24.º, n.º 1 da CRP: (A) O direito à vida inclui o

University Press, Cambridge, 1998, p. 109. 38

Jorge Miranda, António Cortês, anotando o artigo 1.º, in Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª ed., cit., p. 65. 39

David Albert Jones, «Is Dignity Language Useful in Bioethical Discussion of Assisted Suicide and Abortion?», inUnderstanding Human Dignity (Ed. Christopher McCrudden), Oxford University Press, Oxford, 2014, p. 531. 40

«[…] aquelas que têm incapacidades duradouras físicas, intelectuais ou sensoriais, que em interação com várias barreiras podem impedir a sua plena e efetiva participação na sociedade em condições de igualdade com os outros […]» – cf. artigo 1.º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 13 de dezembro de 2006 (aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 30 de julho e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/09, de 30 de julho).