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II SÉRIE-A — NÚMERO 97

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Se o consentimento – «decisão da própria pessoa» – constituía até agora uma condição sempre e em todos

os casos irrelevante no plano da justificação da conduta ou da exclusão da punibilidade, o regime constante do

Decreto atribui-lhe eficácia nas condições que para o efeito define e para a comprovação das quais, como se

explica no Acórdão, estabelece um procedimento formal de averiguação próprio. Trata-se, portanto, de uma

eficácia condicionada, na medida em que dependente da verificação de um conjunto, complexo e articulado,

de condições, que devem ser atestadas no momento e pela forma a que, de acordo com a conjugação do

modelo médico de antecipação da morte não punível com um mecanismo de controlo ex ante baseado na

intervenção de uma entidade pública, o Decreto sujeita a respetiva comprovação.

As circunstâncias materiais aptas a converter o consentimento do titular do direito à vida em dirimente da

responsabilidade penal a que continua sujeita a ablação da vida a pedido e o auxílio material ao suicídio são

recortadas a partir da «situação de sofrimento intolerável» decorrente de «lesão definitiva de gravidade

extrema de acordo com o consenso científico ou de doença incurável e fatal». Comprovadas ambas as

circunstâncias nos termos estabelecidos no Decreto, o legislador suprime a proibição penal a que de outro

modo se encontraria sujeita a intervenção causal ou coadjuvante do médico orientador e demais profissionais

de saúde e, concedendo total primazia à decisão tomada pelo doente, desde que «atual e reiterada, séria, livre

e esclarecida», permite a concretização, no momento, lugar e pelo modo por este escolhidos, da antecipação

do fim da vida em ambiente controlado e próprio, possibilitando dessa forma o recurso à colaboração de

terceiros por parte de quem, por força do carácter insuportável do sofrimento que carrega, reconheça naquela

antecipação uma opção preferível à dor da sobrevivência na irreversibilidade das suas penosas e não

aligeiráveis circunstâncias.

A razão que explica a supressão, neste contexto, do mandamento jurídico-penal de não dar a morte em

quaisquer circunstâncias constitui, a meu ver, o princípio da resposta à questão de saber se a renúncia à tutela

penal da vida humana nas circunstâncias estabelecidas no Decreto, concretizada na regulação (e

consequente legalização) da prática de antecipação do fim de vida no âmbito de um «procedimento

administrativo autorizativo e de execução» instituído e superintendido pelo Estado, coloca o direito

infraconstitucional, no seu funcionamento conjunto, aquém do limiar fixado pelo princípio da proibição da

insuficiência.

Se na génese da incriminação do homicídio a pedido da vítima e do auxílio material ao suicídio se

encontra, como vimos, quer o acautelamento do risco de decisões precipitadas de fim de vida, quer o próprio

compromisso com a defesa da vida da pessoa humana, no sentido atrás exposto, a comprovação de uma

situação de sofrimento extremo em razão de uma condição clínica irreversível e radical não só consubstancia

um fundamento legítimo para retirar plausibilidade à presunção legal de irreflexão e de falta de

amadurecimento subjetivo que subjaz a ambos os tipos – permitindo reconhecer na antecipação da morte o

resultado de um exercício responsável da vontade autodeterminada do doente –, como constitui base

suficiente para que a promoção e proteção da vida humana deixe de condicionar-se, ou até de medir-se, pela

dimensão do indivíduo enquanto ser-com-os-outros, para passar a guiar-se fundamentalmente pela dimensão

da pessoa enquanto ser-aí, tornando-se no essencial dependente da decisão a que esta, enquanto sujeito

autónomo e moralmente capaz, livremente sujeite as suas próprias circunstâncias.

É certo que a supressão da responsabilidade criminal do médico orientador e demais profissionais de

saúde pelo ato que causa ou ajuda a causar a morte do doente cria, no domínio das autolesões e heterolesões

consentidas, um espaço livre de direito penal. Mas daí não se segue que dê origem a um espaço de vazio de

direito. De acordo com o sistema de controlo prévio em que assenta o regime constante do Decreto –

congruente, aliás, com a posição do Comité de Direitos Humanos da ONU referida no Acórdão –, a tutela da

vida humana é assegurada através do conjunto das normas de organização e de procedimento que fixam as

condições em que a antecipação da morte medicamente assistida pode ter lugar, estabelecem o momento e o

modo da sua comprovação e disciplinam a atuação do médico ou profissional de saúde que concretiza a

decisão do doente através da cedência para autoadministração ou da heteroadministração de fármacos letais.

Tendo em conta essa sua função, todas estas normas encontram-se sujeitas, como se afirma no Acórdão, a

particulares exigências de determinabilidade, devendo comportar um grau de densificação congruente, quer

com o especial valor inerente à vida humana, quer com a irreversibilidade do resultado a que esta passa a

poder ser sujeita mediante decisão autodeterminada do doente. É esta exigência de determinabilidade

decorrente do princípio do Estado de direito, neste domínio particularmente intensa, que, partilhando a posição