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16 DE MARÇO DE 2021

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efeito como critério-medida da «amplitude da liberdade de limitação do direito à vida, interpretado de acordo

com o princípio da dignidade da pessoa humana», a primeira premissa de que parto baseia-se no princípio da

unidade da Constituição. Isto é, no entendimento segundo o qual, representando a Constituição uma

ordenação unitária da vida política e social de uma determinada comunidade estadual, cada uma das suas

normas deve ser encarada, não exclusivamente a partir de si mesma, destacada da unidade em que se

inscreve ou nela isolada, mas enquanto parte integrante de um conjunto de elementos em interação e

dependência recíprocas, de cuja atuação global deriva – e só dela pode derivar – a concreta conformação da

coletividade que é dada (e assegurada) pela ordem jurídico-constitucional (neste sentido, Konrad Hesse,

Escritos de Derecho Constitucional (Selección), Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1983, pp. 18 e

48).

A segunda premissa assenta na ideia de que a Constituição, sendo embora uma unidade, está longe de ser

uma unidade qualquer. É uma unidade que, expressando um pacto de vida comum entre os membros da

comunidade, se baseia no princípio da dignidade da pessoa humana, sendo este o referente axiológico que

relaciona e congrega, enquanto partes do todo, os elementos que integram o conjunto, conferindo-lhes um

sentido teleológico próprio e unificador. Sentido que, assentando no respeito, não apenas pela dignidade

inerente à condição que exprime a pertença à espécie humana, mas ainda (e decisivamente) pela dignidade

humana do ser-pessoa, tem, numa sociedade democrática e aberta, uma propensão necessariamente

abrangente e inclusiva, exprimindo um «consenso constitucional em que as várias correntes e convenções

próprias de um pluralismo razoável do nosso tempo se possam rever» (Jorge Reis Novais, A dignidade da

Pessoa Humana, Volume I., 2015, Almedina, p. 25).

A terceira premissa – que constitui, na verdade, uma decorrência lógica das duas anteriores – prende-se

com a função que o princípio da dignidade da pessoa humana desempenha na interpretação das disposições

constitucionais. Na medida em que constitui o elemento em torno do qual a unidade se compõe e agrega, o

princípio da dignidade da pessoa humana intervém nessa interpretação: i) como antecedente (ou prius), no

sentido em que a interpretação de qualquer norma constitucional deve ser sempre orientada para a máxima

realização do seu todo e este baseia-se na dignidade da pessoa humana; e ii) como consequente (ou

posterius), no sentido em que, se a unidade axiológica da Constituição é dada pelo princípio da dignidade da

pessoa humana, é através da interpretação de cada disposição constitucional como elemento integrante dessa

unidade, na sua relação de interdependência com os demais, que o princípio da dignidade da pessoa humana

se revela, materializa e obtém concretização.

Relativamente ao problema central para que remete o pedido, as três premissas expostas permitem

alcançar a seguinte primeira conclusão: sem prejuízo da especial força normativa inerente à proclamação de

que a «vida humana é inviolável», o n.º 1 do artigo 24.º da Constituição não pode ser isoladamente

interpretado, destacado e segregado da unidade em que se insere, de um modo tal que naquela fórmula deva

procurar-se (e possa encontrar-se), sobretudo com apoio em argumentos extraídos do respeito devido pela

dignidade da pessoa humana, tanto o princípio como o fim da resposta à questão de saber se a ordem

jurídico-constitucional admite ou proscreve qualquer regime de antecipação da morte medicamente assistida

não punível, designadamente aquele que se encontra previsto e explicitado no Decreto. Embora pressuponha,

desde logo no plano ontológico, a inviolabilidade da vida humana que lhe dá suporte, a dignidade do ser-

pessoa, na exata medida em que permanece indissociável da conceção do indivíduo como sujeito moral e

autónomo, não se reduz ou esgota nela, designadamente ao ponto de poder amparar uma resposta de tipo

invariavelmente binário ao problema da conformidade constitucional da renúncia à tutela penal da vida

humana perante quaisquer formas de autolesãoe deheterolesãoconsentidas. Assente na autonomia ética e

no valor intrínseco da pessoa como fim em si mesma, o princípio da dignidade da pessoa humana pressupõe

o reconhecimento de um espaço de liberdade decisória inerente à conceção da pessoa como sujeito

intelectual e moralmente capaz, de que é expressão direta o direito à autodeterminação individual e à livre

conformação da vida que a Constituição acolhe, enquanto projeção do direito fundamental ao desenvolvimento

da personalidade, no seu artigo 26.º. Direito cujo sentido é o de assegurar a cada indivíduo a faculdade de

continuamente se autodesignar, realizando as suas próprias escolhas e traçando através delas o seu destino,

e em cujo âmbito por isso se integra «o direito de uma pessoa decidir de que modo e em que momento a sua

vida deve terminar, desde que esteja em condições de formar livremente a sua vontade a esse respeito e de

agir em conformidade» (jurisprudência do TEDH citada no ponto 28 do Acórdão).