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16 DE MARÇO DE 2021

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da maioria, creio não ser satisfeita pelo conceito de «lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o

consenso científico». Tendo por certo que não só o sofrimento intolerável decorrente de doença incurável e

fatal pode constituir objeto de uma ponderação diferenciada da antecipação do fim da vida em face do

desvalor que continua a exprimir-se nos tipos legais do homicídio a pedido da vítima e do auxílio material ao

suicídio, creio também caber ao legislador o dever de densificar o mais possível o universo das condições

clínicas não letais situáveis no mesmo plano, designadamente por referência ao tipo e ao nível de

incapacitação que produzem e ao grau de dependência ou de perda de autonomia que impõem ao doente,

tanto mais quanto certo é que, de acordo com o modelo de controlo ex ante perfilhado no Decreto, se trata

aqui de normas que estabelecem pressupostos de atuação, e não apenas critérios de apuramento, sempre

retrospetivo, de responsabilidade.

Neste contexto, aliás, em que as hipóteses de antecipação da morte medicamente assistida não punível

são recortadas a partir de uma condição clínica radical, não é, em meu entender, determinante o facto de a

renúncia à tutela penal da vida humana nas condições estabelecidas no Decreto se fazer através da

paralisação tanto do tipo legal do auxílio material ao suicídio como do tipo legal do homicídio a pedido da

vítima. Apesar de entre uma atuação e outra interceder em geral a diferença que se funda no «domínio sobre

o ato que de forma imediata e irreversível produz a morte» (ponto 17 de Acórdão), a verdade é que, num

contexto de antecipação da morte medicamente assistida não punível que tem por referência a situação de

sofrimento intolerável gerada por determinada condição clínica extrema e que assegura, através das garantias

inerentes ao procedimento, que a decisão de pôr termo à vida constitui expressão verdadeira e genuína da

autodeterminação esclarecida do doente, qualquer distinção que a esse título se pretendesse introduzir outro

significado não teria, senão o de sujeitar a pessoa que se decidiu pelo termo da vida à provação final de ser

autora material da sua própria morte.

5. Nos pontos anteriores procurei expor as razões pelas quais um regime de antecipação de morte

medicamente assistida recortado a partir do carácter insuportável do sofrimento provocado por uma condição

clínica extrema, assente num procedimento baseado na conjugação de um modelo médico de comprovação e

de execução com um sistema de controlo ex ante, capaz de assegurar o exercício esclarecido da

autodeterminação do doente e cuja explicitação observe um grau de determinabilidade compatível com a

especial natureza do direito à vida, enquanto bem fundante de todos os demais direitos fundamentais, não é

incompatível com o limiar mínimo de proteção da vida humana que se traça a partir do artigo 24.º da

Constituição.

Neste último ponto, tentarei explicar a razão pela qual entendo que, quando se trate de pessoa com doença

fatal em fase terminal – situação que o Acórdão isola e singulariza – , tal regime é, não só constitucionalmente

viável, como constitucionalmente imperativo.

Para o doente que se encontra em processo longo e sofrido de uma morte próxima, a decisão de como

enfrentar o final da sua vida assume uma importância capital. Reconhecer-lhe, neste caso, a faculdade de,

com recurso à prática de atos médicos, escolher o momento em que a morte deverá produzir-se e, sobretudo,

na companhia de quem deverá produzir-se, é a diferença entre sujeitá-lo a aguardar resignadamente pelo

instante, sempre contingente e as mais das vezes solitário, em que de súbito se dá a chegada do fim, ou

permitir-lhe encarar e viver essa chegada com a paz e o amparo só proporcionados pela presença, terna e

próxima, de uma mão conhecida. É, em suma, reconhecer à pessoa fatalmente doente o direito a atribuir um

sentido pessoal ao termo da vida e, por essa insubstituível via, respeitá-la até ao fim na sua eminente

dignidade.

(Joana Fernandes Costa)

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