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16 DE MARÇO DE 2021

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excluiria, a priori, a constitucionalidade de muitas das situações hipotéticas para as quais o legislador

democrático claramente quis, agora, abrir a possibilidade de morte medicamente assistida: desde logo, todas

aquelas em que não se trate de escolher apenas um processo de morte, mas de renunciar a uma vida que se

projeta como não plena, e em sofrimento extremo, ainda que a morte não esteja num horizonte próximo. Por

esta razão, reiteramos que o Acórdão parte de uma compreensão errónea, e quase absolutizada, da norma do

artigo 24.º, n.º 1, da CRP.

Assim – é importante dizê-lo com clareza, dado o percurso argumentativo percorrido, que parte desta

quase absolutização do valor objetivo da vida -, a discussão sobre a amplitude da possibilidade de resolução,

pelo legislador democraticamente legitimado, das situações de conflito entre a sacralidade da e a qualidade de

vida, em favor de um maior espaço de autonomia da pessoa não foi, verdadeiramente, travada, e não pode

ser considerada fechada.

3. O Acórdão ignora a relevância do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (n.º 1 do

artigo 26.º, da CRP), e a sua densificação no quadro das questões especificamente em causa.

No que respeita à densificação da norma do artigo 26.º, n.º 1, da CRP, o Acórdão abstém-se de considerar

a relevância e a especificidade do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, à autodeterminação e à

liberdade, bem como as exigências que decorrem da ideia de consentimento, em situações de doença ou

lesão.

Ora, a verdade é que, quer no plano da ordem jurídica internacional, quer no plano da ordem interna, a

relevância da vontade e do consentimento em todas as matérias relacionadas com a disposição do corpo tem

vindo a crescer. Recorde-se o artigo 5.º da Convenção de Oviedo (Convenção para a Proteção dos Direitos do

Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina: Convenção sobre os

Direitos do Homem e a Biomedicina, de 4 de abril de 1997), nos termos da qual «qualquer intervenção no

domínio da saúde só pode ser efetuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento

livre e esclarecido. Esta pessoa deve receber previamente a informação adequada quanto ao objetivo e à

natureza da intervenção, bem como às suas consequências e riscos. A pessoa em questão pode, em qualquer

momento, revogar livremente o seu consentimento». No plano interno, vejam-se a Lei de Bases dos Cuidados

Paliativos (Lei n.º 52/2012, de 5 de setembro) e a Lei dos Direitos das pessoas em contexto de doença

avançada e em fim de vida (Lei n.º 31/2018, de 18 de julho). A norma do n.º 3 do artigo 5.º desta última lei

prevê expressamente que «as pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida, desde que

devidamente informadas sobre as consequências previsíveis dessa opção pelo médico responsável e pela

equipa multidisciplinar que as acompanham, têm direito a recusar, nos termos da lei, o suporte artificial das

funções vitais e a recusar a prestação de tratamentos não proporcionais nem adequados ao seu estado clínico

e tratamentos, de qualquer natureza».

Estas disposições normativas são tributárias de uma conceção que, atribuindo um relevo central ao direito

fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, justifica que

hoje se tenham por legítimas as recusas de tratamento, em quase todas as circunstâncias, sem que a pessoa

tenha sequer uma obrigação de fundamentação da sua decisão. Reconhece-se, pois, a cada um, o direito de

decidir sobre a sua vida e a sua morte, exigindo respeito pela sua dignidade em ambos os processos (já que

de processos se trata, e não de momentos), de acordo com as suas próprias valorações éticas, morais e/ou

religiosas, a sua conceção do que é uma boa vida, que não pode deixar de ser diversificada, numa sociedade

complexa e plural. O consentimento compreendido nestes termos implica, pois, uma disponibilidade de cada

um sobre si mesmo, sobre o seu corpo, que o acompanha na vida e se assume, igualmente, como regra

fundamental da morte. Além disso, a ideia de proporcionalidade entre as intervenções médicas para prolongar

a vida e a qualidade de vida da pessoa prefigura-se, também, como princípio geral de atuação nestas

matérias, limitando a atividade terapêutica.

É certo que a problemática em causa no presente processo vai um passo além. Contudo, a verdade é que

uma consideração dogmaticamente coerente da densificação do direito ao livre desenvolvimento da

personalidade (ergo, à autodeterminação) que resulta do que foi dito conduz a que exigências jusfundamentais

e até de igualdade exijam o reconhecimento de um amplo espaço de conformação para o legislador, no