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16 DE MARÇO DE 2021

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ponderação complexo e controverso, parece-me seguro que o legislador democrático não pode deixar de

gozar de liberdade de conformação política numa significativa região intermédia entre a proibição do défice de

proteção da autonomia pessoal e a proibição do excesso de restrição da liberdade de escolha. Por isso, as

ordens jurídicas de outras democracias constitucionais europeias contêm regimes muito variados neste

domínio. A solução originária dos artigos 134.º e 135.º do Código Penal, que preveem tipos incriminadores que

cobrem todo o fenómeno da morte assistida, é relativamente conservadora, distinguindo-se, quer das ordens

jurídicas que permitem a eutanásia ativa e o suicídio assistido em determinadas condições, como a holandesa

e a belga, quer daquelas em que a ajuda ao suicídio não é um facto punível, sendo mesmo uma prática social

tolerada, como a alemã e a suíça.

É no uso desta liberdade de conformação política para ponderar as dimensões negativa e positiva da

liberdade geral de ação que o legislador vem agora aprovar um regime excecional de morte medicamente

assistida. Considera-se que, nas condições previstas no n.º 1 do artigo 2.º do decreto, há razões fundadas

para inverter a presunção que informa a incriminação do homicídio a pedido da vítima e a ajuda ao suicídio –

nessas condições, por outras palavras, justifica-se tomar a decisão do indivíduo de pôr termo à vida como

expressão da sua autonomia. Em parte, tal deve-se ao facto de o procedimento administrativo instituído para

verificar as condições em que a morte assistida é permitida assegurar, numa medida que pela sua

onerosidade e morosidade se pode reputar genericamente aceitável, que o pedido é informado, ponderado e

definitivo, sendo de salientar a este respeito a exigência de sucessiva reiteração e a proteção da liberdade de

revogação. Tudo isto pertence ao domínio estritamente processual do regime, visto que está em causa a

formação da decisão individual de morrer; obedece, pois, ao princípio geral de que os requisitos de validade

para o exercício de um direito deverão ser tanto mais exigentes quanto mais significativas forem as suas

consequências no desenvolvimento da personalidade do titular.

Porém, exige-se ainda que o requerente padeça de uma «doença incurável e fatal» ou de uma «lesão

definitiva de gravidade extrema» e que se encontre, em qualquer dos casos, numa situação de «sofrimento

intolerável». O fundamento genérico destas exigências, se bem vejo as coisas, é no essencial o seguinte: se a

presunção de irracionalidade da decisão de dispor da vida repousa no reconhecimento de que a vida é a

condição empírica absoluta dos demais bens mundanos, que a existência pessoal é radicalmente

indeterminada e que os seres humanos não são omniscientes, há razões fundadas para inverter essa

presunção nas situações – aquelas que o legislador procurou isolar com noções qualificadas de «doença» e

«lesão» − em que se verifica uma redução dramática da qualidade de vida, um esmagamento das

possibilidades existenciais e a irreversibilidade ou definitividade do quadro clínico. É compreensível que para

alguns a vida deixe de ter sentido nestas circunstâncias, e esse facto torna a sua vontade de morrer

suficientemente inteligível para que a lei, invertendo a presunção geral que informa a incriminação da morte

assistida, a tome então como expressão da autodeterminação pessoal. É esta inteligibilidade da decisão que

fundamenta o reconhecimento de um direito a morrer com assistência médica; o legislador entende que

nesses casos a proteção da autonomia basta-se com a garantia de que o pedido é informado, ponderado e

definitivo, devendo então prevalecer a liberdade de escolha do requerente. Trata-se de uma opção

constitucionalmente legítima.

7. Se assim é em termos gerais, a solução concreta adotada no n.º 1 do artigo 2.º do decreto não deixa de

merecer uma objeção constitucional: a exigência de verificação administrativa de uma «situação de sofrimento

intolerável». Creio que este requisito restringe excessivamente o direito ao livre desenvolvimento da

personalidade do «doente», desde logo por ser manifestamente inidóneo como meio de tutela da liberdade

geral de ação na sua dimensão positiva.

Importa distinguir sofrimento de dor. Por ser uma sensação, a dor é seguramente subjetiva, no duplo

sentido de ser um evento que ocorre na consciência do sujeito e que é diretamente cognoscível apenas pelo

sujeito. Porém, nem por isso deixa de ser passível de algum grau de objetivação – presente nos atuais

métodos de diagnóstico e na construção de escalas – e de ser mitigada ou debelada através do tratamento

das suas causas ou da administração de anestésicos. Já o sofrimento pressupõe a capacidade de um sujeito

valorar a sua existência segundo uma norma que interiorizou. Só por comodidade de expressão se pode falar

de «sofrimento físico» ou «sofrimento psicológico» − o sofrimento é por natureza um estado holístico e um

fenómeno de ordem existencial; as suas «causas» são necessariamente mediadas pela reflexão e referidas a