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II SÉRIE-A — NÚMERO 97

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determinados valores. Daí que a relação entre dor e sofrimento seja contingente: a dor pode ser uma «causa»

determinante de sofrimento, mas pode haver dor sem sofrimento – regularmente testemunhada por

parturientes, desportistas e missionários – e pode haver sofrimento sem dor, nomeadamente «causada» pelo

fim de uma relação valiosa, pela morte de uma pessoa querida ou pela dependência total de terceiros. Não

impugno que o sofrimento possa ser objeto de uma terapêutica própria – no quadro de uma conceção

interdisciplinar de cuidados paliativos −, mas dou por certo que não se trata de algo de tão prosaico como

tratar uma dor de dentes ou uma contratura muscular, sintomáticos de causas objetivamente identificáveis e

suscetíveis de alívio através da administração de fármacos. Parece-me sobretudo que o sofrimento é uma

realidade profundamente subjetiva, incindível da mundividência pessoal e insuscetível de simples

«verificação».

Por tudo isto, não creio que o sofrimento possa ser «verificado» ou «falsificado» por terceiros,

nomeadamente médicos e comissões administrativas, e ainda menos creio que o possa ser a respetiva

«intolerabilidade». A questão pode ser rigorosamente colocada, do ponto de vista constitucional, nos seguintes

termos. Ao impor como condição da antecipação da morte medicamente assistida uma «situação de

sofrimento intolerável» verificada através do procedimento administrativo regulado no decreto, o legislador

restringe a liberdade geral de ação do «doente», na sua dimensão negativa de liberdade de escolha, presume-

se que com a finalidade – a única que se pode reputar legítima – de proteger a sua autodeterminação pessoal,

a dimensão positiva da liberdade. Sucede que confiar a uma instância heterónoma a verificação de um estado

radicalmente subjetivo é um meio inidóneo e até nocivo de prosseguir essa finalidade – é uma forma insidiosa

de atribuir a terceiros a decisão final sobre a razoabilidade do sofrimento relatado pelo «doente», submetendo

a existência deste a valorações fundadas numa norma exterior incompatível com a sua autonomia. A

desadequação é ainda mais evidente – entrando em contradição ostensiva com o fundamento do regime – se

atentarmos em que a lei não se basta com a verificação do sofrimento, antes exigindo a intolerabilidade do

sofrimento. Em termos práticos, do que se trata é de devolver aos especialistas o poder de julgar se uma

pessoa em determinadas condições, nomeadamente uma doença grave e incurável ou uma lesão definitiva de

gravidade extrema, tem boas razões para deixar de viver. Um regime destes gera dois perigos imensos: por

um lado, o de que as condições em que se pode antecipar a morte passem a depender mais das

mundividências dos profissionais de saúde e das orientações da Comissão de Verificação e Avaliação do que

da vontade contingente e das conceções de vida dos requerentes; por outro lado, o de que a verificação

sucessiva da «situação de sofrimento intolerável» nominalize a liberdade do «doente» revogar o pedido no

último momento, atendendo ao carácter de aquisição progressiva dos atos que integram o procedimento,

conjugado com o facto de o médico ser tomado pelo paciente, o mais das vezes, como uma figura de

autoridade. São perigos demasiado graves num regime que procura servir o exercício da liberdade individual a

respeito da vida e da morte.

Admito que a lei possa ser interpretada, à semelhança do que vem ocorrendo na generalidade dos

sistemas que admitem a morte medicamente assistida, de modo a que este requisito seja integralmente

subjetivado, transfigurando-se na mera exigência protocolar de que o requerente, ao formular o pedido para

morrer, se expresse no sentido de que se encontra numa «situação de sofrimento intolerável». Porém, nada

na lei impõe ou mesmo sugere tal interpretação − a expressão «situação» tem uma conotação fortemente

objetiva − e o Tribunal Constitucional, mesmo que se admitisse em abstrato a sua legitimidade para impor uma

interpretação constitucionalmente conforme da lei, não teria forma de garantir, num sistema de controlo que

não admite a queixa constitucional e em que a jurisprudência é pouco acessível e mal estudada, que tal

interpretação fosse perfilhada pelos destinatários. Penso, assim, que a norma constante do n.º 1 do artigo 2.º

do decreto é inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da

Constituição – por outras palavras, por constituir uma restrição excessiva do direito ao livre desenvolvimento

da personalidade.

8. Resta-me fazer algumas observações sobre a posição que fez vencimento.

Tenho as maiores reservas quanto ao modo como se delimitou o objeto do processo, que me parece

descaracterizar a distinção – firmada em décadas de jurisprudência constitucional – entre o conceito

metodológico de norma, matéria que há muito vem ocupando a teoria jurídica, e o conceito funcional de

norma, delimitado tendo em vista a missão específica da justiça constitucional. Mas mesmo dando de barato a