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16 DE MARÇO DE 2021

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negação paradigmática da liberdade: a escravatura. O escravo está na dependência absoluta da vontade de

terceiro, o seu proprietário; por isso, não tem nenhum direito a ser livre no sentido negativo do termo – goza da

liberdade negativa concedida pelo arbítrio do seu amo. De forma aparentemente paradoxal, Epicuro afirmou

que a liberdade se encontra apenas na submissão total do indivíduo ao saber – um estado compatível com a

condição social dos escravos que frequentavam a sua escola. E Platão pôs Sócrates a defender em vários dos

seus diálogos que os tiranos e demagogos, considerados pelos seus interlocutores como os mais poderosos,

são os que menos podem e os mais infelizes. Assim é – explica − porque não fazem o que realmente querem,

antes o que as suas paixões, inclinações, apetites e tentações os compelem inexoravelmente a fazer. O

verdadeiro dependente, neste sentido, é o indivíduo incapaz de exercer autocontrolo, autodomínio,

autodisciplina – aquele, em suma, que não se governando pela razão e gozando da maior licença para agir, é

escravo dos seus impulsos. A liberdade positiva é normativa, na medida em que se consubstancia na vivência

de acordo com a regularidade racional, que pode resultar tanto da aquisição individual da sabedoria, como da

sujeição a um governo de virtuosos.

Nas suas versões extremadas, liberdade negativa e positiva não são apenas diferentes – são perfeitamente

antagónicas. Entre a liberdade negativa de um Hobbes, que «significa propriamente a ausência de (…)

impedimentos externos ao movimento, e aplica-se tanto a criaturas irracionais como irracionais», e a liberdade

positiva de um Rousseau, segundo o qual «quem quer que recuse obedecer à vontade geral a isso será

coagido por todo o corpo: o que significa apenas que será forçado a ser livre», não há reconciliação possível.

No primeiro sentido, os seres humanos são livres na medida em que possam comportar-se como uma pedra

que rola pela ladeira abaixo sem obstáculos; é a submissão total do indivíduo, do ponto de vista da liberdade

positiva. No segundo sentido, os seres humanos são livres na medida em que observem uma lei

racionalmente justificada, se necessário imposta pela coletividade organizada; é o triunfo do despotismo, na

perspetiva da liberdade negativa. Ora, a democracia constitucional é um modo de vida coletivo que se baseia

na prioridade da liberdade negativa – nos compromissos fundamentais de que a liberdade e a força se

excluem mutuamente; de que toda a restrição da liberdade de escolha carece de um fundamento legítimo; que

em caso de dúvida sobre o alcance das leis se presume a favor da liberdade de ação; e que todo o indivíduo é

senhor de uma esfera de decisão insuscetível de ingerência pela autoridade pública e em que pode agir sem

prestar contas a ninguém. Precisamente aqui reside o ethos liberal dos regimes democráticos

contemporâneos.

5. A liberdade positiva não deixa ainda assim de ter um lugar relevante na nossa ordem constitucional,

numa versão compatível com os argumentos da interioridade e do pluralismo.

Em primeiro lugar, trata-se de conceder que o valor ético ou a virtude moral não podem impor-se pela

força. A liberdade que se realiza através da obediência a uma norma de conduta ou ao reconhecimento de

uma necessidade objetiva implica a liberdade de escolha do sujeito – realiza-se apenas como expressão de

autodeterminação pessoal. Por isso, embora a ordem constitucional de uma democracia liberal procure a sua

legitimidade no consentimento dos destinatários, como sujeitos livres e iguais, não usa da força para garantir a

liberdade positiva dos indivíduos que submete, antes a liberdade negativa dos indivíduos que seriam por

aqueles de outro modo submetidos; a obrigação não é executada para libertar o devedor do mal, mas para

tutelar o direito do credor. Ninguém pode ser forçado a ser livre no sentido positivo do cumprimento do que é

devido: essa liberdade não é realizável de outra forma que não a autonomia, a submissão voluntária do sujeito

a uma norma de conduta que interiorizou. O direito – escreve Kant, o filósofo que mais longe levou a ideia de

liberdade como obediência a um imperativo categórico – assegura as «condições sob as quais o arbítrio de

cada um pode conciliar-se com o arbítrio de outrem segundo uma lei universal de liberdade.» A coação só

pode ser usada para garantir a liberdade negativa; o «reino dos fins» inscreve-se exclusivamente no domínio

da consciência.

Em segundo lugar, trata-se de reconhecer que os modos próprios de reflexão e comunicação numa

sociedade aberta não geram nenhum consenso ético ou religião cívica – nenhuma conceção única de virtude

moral, do sentido da existência ou dos mistérios da vida. A pluralidade irremediável de lealdades

mundividenciais determina que uma ordem de convivência justa só é possível se a autoridade pública invocar

razões que merecem o assentimento de todos os cidadãos, no pressuposto de que estes se respeitam

mutuamente como sujeitos livres e iguais. «A Constituição – lê-se na célebre declaração de voto de Oliver