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II SÉRIE-A — NÚMERO 108

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testemunhe a prática de atos de violência abrangidos pelo âmbito de aplicação da presente Convenção, ou que

tenha motivos razoáveis para crer que tal ato possa ser praticado ou que seja de prever a prática de novos atos

de violência, a comunicá-los às organizações ou autoridades competentes».

Ora, atualmente, os crimes de coação sexual (artigo 163.º do Código Penal), violação (artigo 164.º do Código

Penal) e abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (artigo 165.º do Código Penal) são crimes de natureza

semipública, já que o procedimento criminal se encontra dependente do impulso processual (apresentação de

queixa) da/o ofendida/o ou de outras pessoas (cfr. artigo 113.º do Código Penal). A existência de crimes

semipúblicos traduz-se numa limitação ao princípio da oficialidade, decorrente da vertente inquisitória do

processo penal Português, e segundo o qual o Ministério Público tem legitimidade para promover a ação penal,

não estando, à partida, sujeito a qualquer condicionante.

A consagração destes crimes como crimes de natureza pública implicaria que o Ministério Público, como

entidade promotora da ação penal, tivesse o dever legal de dar início ao procedimento criminal aquando da

receção da notícia do crime por parte das autoridades policiais, independentemente da vontade da pessoa titular

dos bens jurídicos ofendidos. Esta alteração de paradigma não implica que o interesse das vítimas não será

acautelado no âmbito do processo-crime, mas promove, antes, «o reconhecimento de que estas [as vítimas]

precisam da intervenção oficiosa do Estado, pois de outra forma será muito difícil enfrentarem sozinhas o

sistema social e judicial, estando-lhes como alternativa, que não corresponde a uma decisão livre de não

apresentar queixa, viver em silêncio e isolamento social, a dor e a humilhação geradas pelo crime, perpetuando-

se os danos da violação.»3 Um raciocínio semelhante terá sido partilhado aquando da discussão acerca da

transformação da natureza do crime de violência doméstica (de semipública para pública), há vinte anos.

Nesse sentido e concretamente quanto ao crime de violação, tipificado no artigo 164.º do Código Penal, Maria

Clara Sottomayor afirma que «A maior parte das vítimas de violação são mulheres jovens ou adolescentes, que

tendem a não denunciar o crime por padecerem, em consequência da vitimação, de stress pós-traumático,

sentimentos de impotência, vergonha e medo de retaliações, e pelo facto de a violação ocorrer num contexto

familiar ou relacional. Num quadro legal, em que o bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual é

indisponível e está constitucionalmente protegido (arts. 25.º e 26.º da CRP), o Estado deve intervir, pois as

mulheres raramente apresentam queixa por sentirem que os atos sexuais em que foram envolvidas, sem o seu

consentimento, não serão percecionados como violação e, ainda, devido à crença de que pertencem à sua vida

privada e de que são responsáveis por eles»4.

Rebecca Solnit5 apontou que a violação é frequentemente retratada como um incidente isolado, perpetrado

por um agressor anómalo e provocado pelos seus impulsos incontroláveis, ou por um comportamento censurável

ou descuidado da vítima. A violência sexual não é encarada como parte de um padrão, cujas causas são,

essencialmente, culturais, nem como a reflexão de valores transversais de uma sociedade patriarcal que oprime

e subjuga as mulheres. Verifica-se, portanto, uma privatização da violência, e a perpetuação da ideia de que a

violação é uma realidade inerente e indissociável da condição de «ser mulher» e, portanto, constitui uma questão

que se circunscreve à sua esfera privada.

O ordenamento jurídico português não deve ser favorável a este entendimento. Como bem declara Maria

Clara Sottomayor, «A violação não pertence ao domínio da vida privada das mulheres. É uma questão de

interesse público, que compete ao Estado investigar e punir. Vale, neste contexto, a máxima feminista «o que é

privado é público; o que é pessoal é político». A perseguição penal dos violadores constitui um contributo

decisivo para a igualdade de género e para um ambiente social em que os direitos à liberdade e à

autodeterminação sexual das mulheres sejam mais respeitados, aumenta a censura social destes crimes e

contribui para a recuperação psicológica das vítimas. É o Estado que se compromete com as mulheres a assumir

a seu cargo a perseguição criminal dos violadores, sem deixar para as vítimas a angustiosa decisão de ter, ou

não, a iniciativa de apresentar queixa. Transmite-se, em simultâneo, aos violadores, a mensagem segundo a

qual o clima de silêncio, que facilita a prática do crime e a impunidade, tende a terminar e que serão

responsabilizados pelos seus atos. A natureza pública do crime assume, assim, uma finalidade de prevenção

3 Maria Clara Sottomayor, «A Convenção de Istambul e o Novo Paradigma da Violência de Género», Revista Ex Aequo, n.º 31, 2015, p. 115. 4 Maria Clara Sottomayor, ob. cit., p. 112 e 113. 5 Rebecca Solnit, Men Explain Things to Me, 2008.