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II SÉRIE-A — NÚMERO 189

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pessoa trans deveria, em tribunal, alegar que o Estado português teria cometido um erro na atribuição e registo

da sua identidade. Os processos eram marcados pela pesada burocracia e pela morosidade. Infligiam

sentimentos de humilhação e vergonha nas pessoas trans, que se encontravam sujeitas a padrões de género

arbitrários e injustificados, a constantes violações à sua intimidade e vida privada e a visões caricaturais do que

deveriam ser os homens e as mulheres trans, o que acabava por provocar a exclusão de muitas pessoas no

acesso ao reconhecimento legal da sua identidade e o atropelo dos seus Direitos Humanos, pela exigência de

tratamentos médicos (incluindo cirurgias genitais) e de esterilização obrigatória4. Assim, esta lei conferiu um

caráter administrativo ao processo de reconhecimento legal da identidade de género, garantindo que os

requerentes (isto é, pessoas de nacionalidade portuguesa, maiores de idade, residentes em território nacional

ou estrangeiro) poderiam apresentar este pedido em qualquer conservatória do registo civil, que deve ser

acompanhado de relatório que comprove o diagnóstico de «perturbação de identidade de género», elaborado

por uma equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica em estabelecimento de saúde público ou privado,

nacional ou estrangeiro. 91% dos participantes no projeto «Lei de identidade de género»: Impacto e desafios da

inovação legal na área do (trans)género, que pretendeu avaliar a implementação e o impacto da Lei n.º 7/2011,

descreveu este avanço legislativo como «importante» ou «extremamente importante».

A Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, transpõe, portanto, um direito fundamental já previsto na Constituição da

República Portuguesa, nomeadamente no seu artigo 26.º, segundo o qual «A todos são reconhecidos os direitos

à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e

reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra

quaisquer formas de discriminação». À publicação desta lei seguiu-se o Despacho n.º 7247/2019, de 16 de

agosto, que visava estabelecer as medidas administrativas essenciais que o Estado assegure «a adoção de

medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do

direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das

características sexuais das pessoas» (cfr. n.º do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto).

Segundo este diploma legislativo, o reconhecimento jurídico da identidade de género pressupõe, então, a

abertura de um procedimento de mudança da menção do sexo no registo civil e da consequente alteração de

nome próprio, mediante requerimento. Têm legitimidade para requerer este procedimento as pessoas de

nacionalidade portuguesa, maiores de idade e que não se mostrem interditas ou inabilitadas por anomalia

psíquica, cuja identidade de género não corresponda ao sexo atribuído à nascença. As pessoas com idade

compreendida entre os 16 e os 18 anos podem requerer o procedimento através dos seus representantes legais,

devendo o conservador ouvir o requerente, por forma a apurar o seu consentimento expresso, livre e esclarecido,

mediante relatório realizado por qualquer médico inscrito na Ordem dos Médicos ou psicólogo inscrito na Ordem

dos Psicólogos, que ateste a capacidade de decisão e vontade informada da pessoa em causa.

O Acórdão n.º 474/2021 do Tribunal Constitucional, de 29 de junho do corrente, no qual foi declarada a

inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos n.os 1 e 3 do artigo 12.º da Lei n.º

38/2018, de 7 de agosto, surgiu na sequência de um pedido de fiscalização abstrata sucessiva da

inconstitucionalidade das supracitadas normas que não incidiu sobre a configuração e conformação do direito à

autodeterminação da identidade de género, nem sobre o seu «reconhecimento jurídico» através da mudança da

menção do sexo no registo civil por decisão do requerente, mas tão somente sobre as normas dos n.os 1 e 3 do

artigo 12.º, que respeitam a medidas a adotar no plano do sistema educativo. De acordo com os requerentes,

estas disposições legais suscitam duas questões de constitucionalidade: por um lado, levanta-se uma questão

de violação da proibição da programação ideológica do ensino pelo Estado e da liberdade de programação do

ensino particular, segundo o disposto no n.º 2 do artigo 43.º, uma vez que os requerentes argumentam que os

preceitos legais em causa refletem uma «particular conceção da identidade de género», de tipo «culturalista» e

«construtivista», denominada, pelos próprios, como «ideologia de género»5. Por outro lado, há uma questão de

violação «da exigência de precisão ou determinabilidade das leis», bem como do «princípio da reserva de lei

parlamentar», uma vez que «o artigo 12.º, n.os 1 e 3, não oferece uma medida jurídica apta a fixar orientações

com densidade suficiente para balizar a adoção pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas da

igualdade de género e da educação das medidas administrativas a adotar no prazo de 180 dias».

4 Em A Lei da Identidade de Género – Avaliação da implementação e do impacto da Lei n.º 7/2011, de 15 de março, que regula o procedimento de mudança de sexo legal no registo civil e correspondente alteração de nome próprio da ILGA Portugal. 5 Acórdão n.º 474/2021 do Tribunal Constitucional, p. 11.