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II SÉRIE-A — NÚMERO 64

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por lei». Assim, não restam dúvidas que a violência exercida sobre os touros nas corridas e tudo o que as

envolve (desde o transporte até ao abate) consubstancia um mau-trato do ponto de vista médico-veterinário

bem como do ponto de vista legal, limitando-se a lei a excecionar esta prática de um ilícito.

Ademais, o bem-estar animal é hoje um bem jurídico com relevância não apenas no nosso ordenamento

jurídico, mas também ao nível europeu, estando atribuído um estatuto jurídico próprio aos animais no Código

Civil, que reconhece no seu artigo 201.º-B que «Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade» e

ressaltando uma manifesta incoerência normativa, pois prevê igualmente o código civil no seu artigo 1305.º-A

(propriedade de animais) «O proprietário de um animal deve assegurar o seu bem-estar» (n.º 1) e que «O

direito de propriedade de um animal não abrange a possibilidade de, sem motivo legítimo, infligir dor,

sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos que resultem em sofrimento injustificado, abandono ou morte. (n.º

3).Não menos importante é o sofrimento dos cavalos. Utilizados no espetáculo, também muita das vezes

feridos, mantêm-se na praça por obediência ao cavaleiro e receio dos equipamentos de controlo por este

utilizados (tais como as esporas), com grande stress, medo e desconforto. Acresce, que frequentemente, no

caso da Praça de Touros do Campo Pequeno, verifica-se que os cavalos aguardam no exterior do recinto, sem

quaisquer condições adequadas ao seu descanso, abeberamento ou assistência médico-veterinária, sempre

que necessário, para mais tendo presente as consequências das lesões que frequentemente acontecem

durante o evento.

A tradição e a preservação da cultura portuguesa ou nacional são os argumentos mais frequentes para a

defesa da tourada.

Conforme refere Carla Amado Gomes «as tradições formam-se, perdem-se, recuperam-se, banem-se,

como fenómenos culturais/temporais que são. Os desportos/espetáculos, ainda que tradicionais, devem ser

revistos de acordo com as alterações de conceções sociais dominantes: Não é despiciendo que atualmente

não haja lutas de gladiadores ou que as lutas de cães sejam proibidas (cfr. o Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29

de outubro). Os animais são companheiros do homem na aventura da vida e como tal e na sua condição de

seres sensíveis, devem ser resguardados de práticas que, desnecessariamente, lesem a sua integridade18».

Na mesma esteira, defende Menezes Cordeiro que «há um fundo ético-humanista, que se estende a toda

forma de vida, particularmente à sensível. O ser humano sabe que o animal pode sofrer; sabe fazê-lo sofrer;

sabe evitar fazê-lo. A sabedoria dá-lhe responsabilidade. Nada disso o deixará indiferente – ou teremos uma

anomalia, em termos sociais e culturais, dado o paralelismo com todos os valores humanos»19.

Acompanhamos ainda o entendimento de Fernando Araújo, que refere o seguinte a respeito da anacrónica

atividade das touradas: «Nem cometeremos o erro de considerarmos esses espetáculos como sobrevivências

de formas mais primitivas da nossa civilização – porque isso seria ainda dignificá-los como tradição, além de

que seria cometermos uma grave injustiça para com aqueles que, desde sempre, se insurgiram contra a

sórdida crueldade na qual o principal espetáculo é, afinal, fornecido pelos próprios espectadores e consiste na

exibição da mais abjeta cobardia de que a espécie humana é capaz, o gozo alarve com a fragilidade e com a

dependência alheias».20

A cultura, enquanto conjunto de costumes, de instituições e de obras que constituem a herança de uma

comunidade, não constitui, e não pode constituir, fundamento para legitimar práticas e atividades que já não se

compadecem com o nosso conhecimento.

A história da humanidade está repleta de tradições, de práticas e de atividades que foram sendo

abandonadas precisamente por estarem sujeitas ao pulsar evolutivo do crivo ético das sociedades.

Dispõe o Decreto-Lei n.º 89/2014 de 11 de junho que «entre as várias expressões, práticas sociais, eventos

festivos e rituais que compõem a tauromaquia, a importância dos espetáculos em praças de toiros está

traduzida no número significativo de espectadores que assistem a este tipo de espetáculos». Ora, se para o

legislador o «número significativo de espectadores que assistem a este tipo de espetáculos» é conditio sine

qua non para aferir da importância da tourada, considerando o declínio acentuado e reiterado de público nas

praças de touros – números que são públicos e do conhecimento geral – não faz já sentido que por essa razão

haja apoio institucional das mesmas, quer estatal, quer municipal.

18 Desporto e Proteção dos animais: Por um pacto de não agressão – ICPJ-CIDP, disponível em https://www.icjp.pt/sites/default/ files/papers/cej-animais_revisto.pdf. 19 Tratado de Direito Civil Português, V. I, t. II, p. 214, ed. Livraria Almedina. 20 Fernando Araújo, A Hora dos Direitos dos Animais, Capítulo 8. Libertação – I – Podem Eles Sofrer? Devem Eles Sofrer? Sangue na Arena, pg. 116 a 118)