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II SÉRIE-A — NÚMERO 1

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maus-tratos não é nem o princípio constitucional da dignidade humana, nem da proteção do meio ambiente,

conforme entende alguma doutrina, que igualmente considera a conformidade do diploma com a lei fundamental,

mas do artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa, segundo a qual Portugal é uma república

«empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária».

Para o Procurador «não estão em causa, ao menos imediatamente, os valores constitucionais da dignidade

da pessoa humana e a tarefa estadual da proteção do ambiente, mas um valor socialmente construído,

consubstanciado numa responsabilidade reconhecida pela comunidade dos cidadãos como integrante dos

princípios fundamentais da solidariedade e da justiça perante os animais de companhia».

Acrescentando que tal implica que as leis vigentes acolham «as novas conceções sociais e jurídicas em

matéria de proteção e do bem-estar animal». A possibilidade teórica de alguém que maltrata um animal cumprir

pena de cadeia efetiva – o que ainda nunca aconteceu em Portugal – tem, para o autor do artigo, um efeito

dissuasor da prática deste tipo de crime que não é de menosprezar.

O Procurador contesta igualmente o argumento de alguns dos juízes conselheiros que defendem a

indefinição e imprecisão dos conceitos de animal de companhia e de maus-tratos, concretizando que «em

múltiplos tipos legais do Código Penal constam termos e conceitos indeterminados, vagos ou porosos, alguns

deles textualmente equiparáveis àqueles aqui em causa», como é o caso do significado da palavra sofrimento.

Assim, entende que caberá aos intérpretes das leis fazer corresponder as definições legais a cada caso

concreto, como sucede em tantas outras situações.

No mesmo sentido do exposto e igualmente antes do Acórdão n.º 70/2024, de 23 de janeiro, mais de 70

juristas subscreveram um manifesto em nome do progresso civilizacional já alcançado pela ordem jurídica

portuguesa e, bem assim, da sua estabilidade e conformidade constitucional, defendendo que o entendimento

fundamentado pelos juízes conselheiros «é excessivamente formalista, tem gerado enorme perplexidade entre

juristas e não juristas, para além de grande alarme social e de calamitosa injustiça em sucessivos casos de

maus-tratos que chocaram, e chocam, o País».6

Como bem observam os juristas e fazendo uso do defendido pelo Prof. Jorge Reis Novais, a Constituição

não é um catálogo de bens jurídicos7 e, bem assim, não se restringe ao elemento literal. Caso contrário, como

bem aponta o Prof. Rui Pereira8, muitos outros tipos de crime serão inconstitucionais, como o caso dos crimes

contra o respeito devido aos mortos ou dos crimes contra a vida intrauterina, já que o acórdão sob censura

proclama que o princípio da dignidade da pessoa humana é demasiado abstrato para fundamentar ou restringir

direitos subjetivos.

Nas decisões do Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta, alguns juízes conselheiros

divergiram desse entendimento, e consideraram estar perante a existência de um bem jurídico com suficiente

densidade constitucional para preencher a exigência do texto constitucional, sustentando, porém, que a norma

em presença incumpre as exigências de tipicidade e determinabilidade exigidas pelo n.º 1 do artigo 29.º da

Constituição da República, concretamente por aludir a conceitos indeterminados que ditariam a

inconstitucionalidade da norma, em particular ao nível da norma que estabelece o conceito de animal, o conteúdo

da ação penalmente censurada e o conceito excludente da prática de ilícito.

Sem prejuízo do nosso entendimento divergir quanto a esta necessidade, conforme supraexposto, a questão

apontada essencialmente em votos de vencido quanto à fundamentação da decisão, lança o repto para um

trabalho legislativo com vista à determinabilidade das normas penais.

Por isso, a presente iniciativa visa densificar os elementos que poderão aportar alguma indeterminabilidade

na aplicação das normas em apreço.

Lê-se na declaração de voto de vencido do Juiz Conselheiro Gonçalo Almeida Ribeiro, no Acórdão

n.º 867/2021, «a lei é indeterminada em três aspetos importantes, cujo efeito cumulativo é uma incerteza

demasiado grande quanto ao que venha a ser o facto punível». Os dois primeiros são relativamente simples.

Trata-se, por um lado, da indefinição quanto ao conteúdo da ação. A lei diz que é «infligir dor, sofrimento ou

quaisquer outros maus tratos físicos», sem que se compreenda bem, dada a confusão manifesta entre a conduta

causal (maus tratos) e os seus efeitos (dor ou sofrimento), e abstraindo agora do problema delicado da relação

entre dor e sofrimento e da possibilidade de um animal de companhia (e qualquer um) sofrer no sentido próprio

6 Manifesto – a tutela penal dos animais não é inconstitucional (wordpress.com) 7 Cf.https://www.publico.pt/2021/11/23/opiniao/opiniao/tribunal-constitucional-regride-40-anos-1985863 8 Cf.https://www.cmjornal.pt/opiniao/colunistas/rui-pereira/detalhe/20211119-2349-os-animais-na-constituicao