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II SÉRIE-C — NÚMERO 24

Declaração de voto

Deliberação sobre queixa do Presidente da Assembleia da República contra a SIC

Abstive-me na votação da deliberação em causa pelos motivos que passo a desenvolver:

1 — O Presidente da Assembleia da República coloca,

na sua queixa, a questão nos devidos planos.

Na medida em que o comportamento da SIC constituísse, de facto, uma «ofensa gratuita e grosseira à dignidade de úm órgão de soberania que representa a totalidade dos cidadãos portugueses, logo indirectamente a todos estes [...], o acto poderia, inclusive, ser passível de procedimento judicial, se viesse a ser considerado, como provavelmente podia, abuso de liberdade de informar».

Não é essa a esfera da acção da Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS).

O âmbito no qual o Presidente da Assembleia da República insere a sua queixa é, justamente, o do rigor da informação articulado com o da deontologia profissional do jornalista.

Com efeito, é atribuição da AACS «providenciar pela isenção e rigor da informação», conforme o estabelecido no artigo 3.°, alínea e), da Lei n.° 15/90, de 30 de Junho.

De facto, segundo o Código Deontológico do Jornalista, aprovado em 4 de Maio de 1993, no seu n.° 1, «o jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão».

Na medida do contido no artigo 3.°, alínea e), da Lei n.° 15/90, de 30 de Junho, em conjugação com o disposto no artigo 4.°, n.° 1, alínea 0. da mesma lei, a queixa manifestamente incide sobre a matéria da competência da AACS.

2 — Importa, assim, saber se a SIC, no referido serviço noticioso, violou ou não o seu dever de rigor de informação:

Ao distorcer o som da voz do Presidente da Assembleia da República.

Ao acelerar os movimentos dos Srs. Deputados nos momentos da votação.

Ao exercer a sátira num programa de informação como é, eminentemente, um «jornal» televisivo.

3 — É óbvio que uma distorção de voz e uma aceleração de movimentos não constituem uma forma rigorosa de jornalisticamente noticiar o ocorrido numa sessão do Plenário da Assembleia da República ou em quaisquer outros momentos e com quaisquer outros órgãos e pessoas.

Como é óbvio que a sátira, em si mesma, na medida em que tem por fim censurar ou ridicularizar defeitos ou vícios, na medida em que é maldizente, jocosa, ou joco--séria, não será, também, a forma rigorosa de jornalisticamente noticiar o acontecido, na Assembleia da República ou onde quer que seja.

Uma questão se coloca, porém, no caso.

Aliás, nos casos.

Porque a queixa envolve duas peças do citado Último Jornal da SIC, ambas relativas a factos ocorridos na Assembleia da República.

A primeira sobre a votação, aliás, votações, da proposta do Governo quanto à transferência dos lucros do Totobola para os clubes de futebol.

A segunda sobre a votação de uma outra proposta de alteração das regras de perda do mandato dos presidentes de câmaras municipais.

Ora, a questão que se coloca é a de que, da análise das peças noticiosas, ressalta que a sátira utilizada em ambas é constituída por passagens, não é o todo.

Que o todo é, nos dois casos, muito mais abundante, refere os factos, relata-os, noticia-os, ouve, sobre eles, personalidades de diversas correntes políticas.

Que a sátira surge como reconstituição jocosa de acontecimentos, no primeiro caso, antes mostrados ou referidos com seriedade, no segundo caso, depois de tratados com igual seriedade.

Ou seja, as peças são reportagens nas quais predomina a informação jornalística concreta, objectiva, rigorosa, à qual se junta, de facto, o tratamento satírico dos momentos das votações.

O uatamento satírico isolado, constituindo ele toda uma pretensa notícia, pode ser passível de uma acusação de falta de rigor jornalístico.

Ora, estamos perante meros fragmentos de peças que, no seu conjunto, são de apreciável objectividade.

Assim, as referidas peças jornalísticas não podem ser tomadas, na sua globalidade, na sua essência, como não rigorosas.

4 — Continuando a não entrar na questão sobre se o presente tratamento satírico desta sessão do Plenário da Assembleia da República ofende ou não ofende, de facto, a dignidade de um órgão de soberania — o que não é, repete-se, esfera de acção da AACS, mas do poder judicial —, aborda-se um aspecto levantado na queixa do Presidente da Assembleia da República: o do «inusitado», que será a contiguidade entre um programa noticioso e a sátira, o de que tal revestiria outro peso e significado (o queixoso refere mesmo outra gravidade) se o citado fragmento fosse inserido num programa de sátira política.

Sem nos pronunciarmos sobre a qualidade, o nível, destes concretos tratamentos satíricos, cabe aqui referir a importância histórica e cultural da sátira em si mesma, nos

diversos domínios da criação, designadamente jornalístico.

A história do jornalismo em Portugal está marcada por uma veia satírica, de sentidos ideológicos e políticos saudavelmente contraditórios, mas ligada a grandes combates e transformações sociais, políticas, culturais.

Tal como a história do jornalismo mundial.

Tal como a prática frequente, em algumas sociedades, sobretudo livres e democráticas, aliás porventura crescente.

Só pode ser, também, à sátira, ao comentário satírico, que a CRP se refere quando, no artigo 37.°, n.° 1, afirma que «todos têm direito de exprimir o seu pensamento pela palavra, pela imagem óu por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações».

Assim como só pode ser, também, à sátira, ao comentário satírico, que a CRP se refere quando, no seu arti- go 38.°, n.° 2, estabelece que «a liberdade de imprensa implica: a) A liberdade de expressão e criação dos jornalistas».

Nos limites da lei, designadamente enquanto não ofensiva e atentatória do bom nome e da dignidade das pessoas ou instituições que dela são objecto —revistam estas a dignidade, designadamente constitucional, que revestirem —, a sátira pode ser, com efeito, um instrumento fundamental de aperfeiçoamento das sociedades democráticas.