18 DE JANEIRO DE 1997
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e, por identidade de razão, para «a qualificação jurídica dos factos apurados nessa instrução processual», já que «verificar se existe ou não um impedimento [...] não pode ser outra coisa senão proceder à aplicação da lei aos factos apurados».
No próprio parecer da 1." Comissão se reconhece que, «admitir-se uma competência paralela ou concorrente da 1." Comissão [com a Comissão de Ética] conduziria inevitavelmente a disfunções [...] que não favoreceriam a transparência e a moralização da vida parlamentar».
É verdade que a parte final do n.° 3 do artigo 4." do Regimento da Assembleia da República não foi expressa e inequivocamente derrogada pela Lei n.° 24/95. Mas a isso objecta o Sr. Presidente da Comissão de Ética que o preceituado na alínea d) do artigo 38.° do mesmo Regimento também não foi expressa e inequivocamente derrogado pela Lei n.° 24/95. E assim, «para que a instrução dos processos de perda de mandato baseados num qualquer impedimento possa considerar-se reserva própria da competência da Comissão de Ética, como se conclui no parecer [da 1Comissão], forçoso é afinal ter de julgar--se revogado pela Lei n.° 24/95 o preceituado, quanto a esta matéria, no citado artigo 38.°, alínea d), do Regimento da Assembleia da República».
Igual conclusão se impõe «quanto ao preceituado no artigo 4.°, n.° 3, do Regimento».
Tratar-se-ia, em ambos os casos, não de uma revogação expressa, mas implícita; dada a incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes e a circunstância de a nova lei regular a matéria anterior. A Lei n° 24/95, como lei especial, derrogou, nas partes sobreponíveis, as normas da lei geral anterior, que é o Regimento da Assembleia da República. Não há assim lugar à repartição de competências defendida no parecer da 1 .* Comissão.
Acresce que «não faria sentido que a Comissão de Ética tivesse sido criada só para servir de instrumento inquisitorial da 1." Comissão».
Dito de outro modo: defende o Sr. Presidente da Comissão de Ética, e implicitamente esta mesma Comissão, que a aparente inconciabilidade entre as disposições em apreço do Regimento e da Lei n.° 24/95 se resolva considerando revogadas aquelas disposições por estas.
2.4 — Cumpre à Mesa optar por uma ou outra das referidas tentativas de conciliação ou não conciliação dos textos sob análise, ou defender uma terceira via —uma vez mais conciliatória ou não— que se lhe afigure mais defensável.
Antes, porém, deve colocar-se a questão de saber se, não tendo o legislador feito opção, nem pelo Regimento, nem pelo Estatuto, podemos aós, ainda agora, optar por ele.
A questão prende-se com a de saber se uma lei ordinária, aprovada com desprezo do processo específico de alteração do Regimento (artigos 289." e seguintes), pode implicitamente, ou mesmo explicitamente, revogar este.
A resposta prende-se com a diversa natureza normativa da lei e do Regimento. Não é fácil a caracterização relativa de uma e outro. Mas Gomes Canotilho e Vital Moreira, na sua conhecida anotação à Constituição, abrem algumas pistas.
Desde logo a de apurar se «as matérias naturalmente regimentais podem ser objecto de regulamentação te^vslativa ou se, pelo contrário, existe um conteúdo obrigatório do Regimento — uma reserva de Regimento — que por princípio afaste a interferência legislativa».
E acrescentam: «O Regimento reveste uma forma normativa específica, distinta dos outros tipos correntes de actos normativos, sendo publicado como tal no Diário da República.» [Artigo 122.°, n.° 1, alínea f), da Constituição.] É, além disso, «publicado independentemente de promulgação peio Presidente da República e de referenda do Governo».
E rematam: «finalmente, é problemática a sua natureza normativa, sendo apenas seguro que se não trata de um acto legislativo [...] expressão da autonomia normativa interna da Assembleia da República».
Quanto à necessidade de uma fronteira entre o Regimento e a lei, anotam aqueles constitucionalistas que deve existir, entre ambos, «em princípio, uma relação de repartição de competências e não de hierarquia». Mas acrescentam com relevo para a nossa indagação: «em caso de conflito, deve ceder a lei quando tenha invadido o espaço regimental, ou deve ceder o Regimento quando tenha extravasado para o espaço da lei» (ob. cit., 2.° ed., 2.° vol„ pp. 235 e 236).
Constituirá temeridade pretender que, no caso vertente, foi a lei que invadiu o espaço do Regimento? Não, decerto, ao criar novos casos de incompatibilidade. Mas seguramente sim ao alterar o formalismo do seu conhecimento previsto em disposições regimentais.
Uma coisa é certa: estas considerações sobre a relação entre a lei e o Regimento permitem, no mínimo — mas seguramente não só —, afastar o argumento aduzido a partir do princípio segundo o qual a lei posterior revoga a anterior, explícita ou implicitamente. Se não estamos em face de duas leis, mas de normativos de índole diferente, aquele princípio não é invocável aqui.
Nem se diga ex adverso que, nos termos da Constituição, é à lei que cabe a determinação das incompatibilidades não constitucionalmente previstas. Como bem se vê, não está em causa a forma de criação de novas incompatibilidades, mas a via regimental de conhecer da sua existência em concreto.
2.5 — Admitamos, porém, sem conceder, que as anteriores considerações sobre a prevalência do Regimento sobre a Lef n.° 24/95 não resolvem a questão da inconciabilidade entre os dispositivos em causa de um e outro. Como, neste caso, e em que sentido, se haveria de resolver aquela inconciabilidade?
A Mesa não aceita, salvo o devido respeito, e pelas razões já aduzidas, a tese da Comissão de Ética, consistente na prevalência dos dispositivos da lei sobre os do Regimento.
Mas da rejeição da tese contrária, ou seja, a da prevalência dos dispositivos do Regimento sobre os da lei, ut supra, não poderia a Comissão de Ética saltar para a defesa da sua própria tese. E não, porque semelhante interpretação dos dispositivos em causa não encontraria a mínima correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa, na letra desses mesmos dispositivos. Ora, essa é uma exigência indeclinável do artigo 9.° do Código Civil em matéria de interpretação das leis.
Mas também não colhe o nosso entusiasmo a «saída» encontrada no douto parecer da 1." Comissão, apesar de esta poder colher algum arrimo na expressão «verificar os casos de impedimento e, em caso de violação, instruir os respectivos processos», constante da alínea a) do n.° 3 do artigo 28.° do Estatuto dos Deputados.
«Verificar» significa o quê? Apurar os factos e aplicar--lhes o direito, como pretende a Comissão de Ética?