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II SÉRIE - C — NÚMERO 8
Não parece que deva ser assim. Se só após a verificação dos factos se comete aquela Comissão a «instrução dos respectivos processos», é porque verificar não é qualificar juridicamente os factos a que se refere a instrução. Por outro lado, se o legislador tivesse querido consagrar aquela competência, não teria deixado de preferir o verbo «apreciar», de que se socorre nas alíneas c), d) e e) do mesmo número do mesmo artigo, relativas aos conflitos de interesses, no quadro do registo de interesses que preenche a epígrafe do capítulo do Estatuto de Deputados em que o artigo 28.° se insere.
Poderia, aliás, invocar-se ainda, contra a conclusão que a Comissão de Ética retira, que na alínea a) do n.° 3 do artigo 28.° do Estatuto dos Deputados não se prevê a emissão, por aquela Comissão, de qualquer juízo sobre o resultado da instrução — na forma de parecer ou qualquer outra — ao contrário do que acontece na alínea c) do artigo 38° do Regimento, que comete expressamente à 1 .* Comissão a emissão de parecer sobre a perda do mandato.
Mas com razão objecta o Sr. Presidente da Comissão de Ética que se, pela interpretação da 1." Comissão, deixassem de ser cumulativas ás competências das duas comissões, continuariam cumuladas as competências para a instrução dos processos que a alínea d) do artigo 38." do Regimento igualmente comete à 1.* Comissão. Estaríamos —diz o Presidente da Comissão de Ética — perante o absurdo de duas instruções cometidas sucessivamente a duas comissões.
Não se nega a irrazoabilidade dessa solução. Mas irrazoável é a muitos títulos a Lei n.° 24/95! Além de em alguns pontos inconstitucional. Além de, noutros, verdadeiramente iníqua. Infelizmente, o absurdo visita, não raro, o legislador no seu mister de legislar sob pressão!
A tal ponto assim é que aquela lei está a pedir uma barreia, e os grupos parlamentares devem chamar a si essa salutar preocupação.
Enquanto a não fizerem, cabe à Mesa interpretar o Regimento e integrar as suas lacunas [artigo 26.°, n.° 1, alínea b)], não interpretar ou integrar aquela lei. Ora, os dispositivos do Regimento são claros e in claris non fit interpretado.
É tempo de concluir esta segunda questão prévia. E concluindo, a Mesa considera que o legislador, muito provavelmente, não tomou consciência da cumulação de competências a que deu azo; que a solução defendida pela Comissão de Ética não encontra na lei a mínima correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa; que a solução propugnada pela 1.* Comissão, podendo encontrar na lei essa correspondência mínima, se apresenta como saída de recurso para um embaraço tido por de outro modo intransponível, com o defeito acrescido de não justificar racionalmente a subsistência de duas comissões competentes para a instrução do mesmo processo; que, enfim, a solução que a Mesa tem por mais razoável é não tentar conciliar o que racionalmente, pelo menos em parte, não é conciliável. Ou porque não tem de sê-lo, se tivermos por boa a prevalência do Regimento sobre a lei, ut supra; ou porque, sendo embora irrazoável, não é material nem legalmente impossível a existência de duas comissões parlamentares com competências em parte coincidentes para instruir processos sobre a mesma matéria, emitindo a final uma conclusão factual e ou jurídica não vinculativa, já que dúvidas se não acalentam sobre a competência da Mesa da Assembleia da República, para proferir a decisão final, ainda que sujeita a recurso para o Plenário da Assembleia da República, nos termos gerais [alínea a) do n.° 1 do
artigo 25.° do Regimento]. Estaríamos em face de duas instâncias para se pronunciarem sobre a mesma matéria. Uma do ponto de vista da eticidade de certa situação factual criada por um qualquer Deputado; outra do ponto de vista da sua conformidade com a Constituição, o Regimento e a lei.
A Mesa não se sente feliz com o «achado» desta interpretação em alternativa. Mas não vê vantagem em «forçar» a existência de outra melhor.
3.1 —De fundo:
Sobre a situação material controvertida, a Mesa deixa registado o seu maior apreço pela formulação das duas teses em confronto. E perfilha, na generalidade dos seus termos — sem prejuízo das anotadas discordâncias pontuais —, a justificação e as conclusões do douto parecer da 1.' Comissão.
Começa por anotar que, nenhuma das teses se apresentando como irrefutável, ou evidente, a dúvida sobrante não poderia deixar de beneficiar o Sr. Deputado em causa: in dúbio pro legatus.
Isto porque a relação de mandato político, resultante de uma eleição popular, directa e universal, se reveste de tal consistência e significado que, onde puder subsistir a dúvida, não pode caber a perda do mandato.
A Mesa tem esta prudência por irrecusável.
Ora, a hipótese factual não vem configurada em termos de evidência ou de certeza. Bem pelo contrário: vem envolvida em elocubrações as mais contraditórias e discordâncias as mais irredutíveis sobre a valoração das condutas e a respectiva qualificação jurídica.
O dever de ser prudente e de acolher uma interpretação restritiva, sempre que possível, decorre, aliás, da própria Constituição.
Tomar parte na vida política é um direito fundamental dos cidadãos — artigo 48.°, n.° 1.
Em matéria de inelegibilidades, a lei só pode estabelecer «as necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores — que agora não está em causa — e a isenção e independência do exercício dos respectivos cargos» — artigo 50.°, n.° 3. Se assim é para o acesso ao mandato, assim terá de ser para a garantia do seu exercício.
E a lei «só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» (artigo 18.°).
Acresce que «as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter gerai e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais» (artigo 18.°, n.° 3).
Que outros direitos ou interesses têm, neste caso, a cobertura garantística da Constituição? Apesar de, em matéria de incompatibilidades, o texto consmuwwiA remeter secamente para a lei (artigo 157.°, n.° 2, da Constituição da República), parece não ser arriscado admitir que o valor constitucional oponível à protecção dos mencionados direitos políticos é, após a eleição de certo Deputado, a isenção e independência do respecÚNO mandato (citado artigo 50.*, n.° 3).
Do artigo 163.° da Constituição da República decorre ainda que os casos de perda do mandato expressamente previstos na Constituição se revestem de particular gravidade. Com isso, o legislador constituinte forneceu uma orientação exemplificativa ao legislador ordinário: a de que.