30 DE MARÇO DE 1988 75
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que a proposta do PCP teve desde logo o mérito de acordar no espírito do Sr. Deputado Sottomayor Cárdia um conjunto de reflexões a ter em conta. Porém, a proposta final que o Sr. Deputado fez não tem literalmente nada a ver com o conteúdo material, directo e imediato daquilo que nós propusemos, mas sim com toda uma outra problemática - que, aliás, o Sr. Deputado teve ocasião de desenvolver na intervenção que produziu - que culmina de uma forma que me parece bastante expressiva. E o mero cotejo entre a proposta que o Sr. Deputado fez e o texto que o PCP adiantou permite destrinçar que estamos perante realidades de tipo totalmente diferente.
Desde logo, o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia invocou a proposta apresentada pelo PCP na Assembleia Constituinte, o que quer dizer que trouxe a debate a memória histórica da discussão então travada. Só que essa discussão foi a discussão da génese da Constituição e a remissão feita pelos projectos apresentados por cada um dos partidos - e todos o fizeram - foi a remissão para um determinado universo, que não aquele que resultou a fim no texto aprovado em 1976, texto esse que não foi também um mero somatório dos textos originariamente apresentados por cada um dos partidos. Aduzo isto para dizer que a memória do debate na Constituinte e dos projectos apresentados por cada um dos partidos é possível, mas provavelmente inútil, inoportuna e porventura também indutora de alguma dificuldade de percepção, porque o código conceptual para que nós nos remetemos ao propor o aditamento de um n.° 3 com o teor proposto é única, exclusiva e precisamente o código constitucional da Constituição tal qual está em vigor, e não outro qualquer.
Isto é, não há aqui um regresso à Constituinte nem estamos em processo constituinte que tale nem, sobretudo, estamos em 1974, como também salta aos olhos, o que quer dizer que a reflexão sobre as dimensões do princípio da igualdade não se pode fazer hoje face ao terreno "limpo", ao terreno vazio, de reflectir sobre quantas dimensões esse princípio deveria ter, no sentido de se saber se deveria ter só a dimensão clássica liberal, se deveria admitir uma outra dimensão de carácter mais democrático ou se se lhe deveria dar uma terceira dimensão, uma dimensão socialista, com este ou aquele cunho. Havemos de nos ater ao facto de que no nosso Estado de direito democrático, independentemente da visão - que terá de ser necessariamente plural - que cada uma das forças políticas tenha desse Estado de direito democrático, o princípio da igualdade e um princípio estruturante e entendido em três dimensões, e não apenas numa, ou seja, não apenas na vertente liberal, pois há mais duas vertentes a considerar.
Ou seja, a nossa proposta não quer fazer revolver ninguém no túmulo, onde deve descansar em paz, como convém; nem exorcizar ilusões de carácter liberal ou, pelo contrário, ale exorcizar perigos e tendências supraliberais e amortalhá-las, encafuá-las, limitá-las, espartilhá-las, etc. nem, naturalmente, queremos entrar em nenhum concurso - creio que isso não é regular nem razoável face ao quadro constitucional que nos rege - sobre a desigual ou igual valia das liberdades que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia enunciou longamente e que, portanto, me dispenso de reproduzir - a enumeração e perfeitamente possível, podendo, aliás, ser aditada -, e menos ainda, naturalmente, fazer comparações e cotejos entre a vida dos génios e a vida dos imbecis. Está, portanto, perfeitamente fora de questão o facto de tudo isso estar salvaguardado à luz de reflexões que partilharemos - nós e o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia - seguramente em muitas medidas. E não se trata de fazer esse tipo de pensamentos, porque a Constituição nos dispensa disso.
Em suma, o que nos preocupa é apenas o facto de que, dentro desse código conceptual que referi, o único no qual nos caberia a todos movermo-nos, se acentue um aspecto nas dimensões do princípio da igualdade, ou seja, o da sua função social. Princípio da igualdade que, sem acções que permitam remover os obstáculos de carácter social, cultural, etc., não passará de uma ficção simpática, o que num Estado como o nosso seria muitíssimo pouco.
Pode-se é argumentar noutro terreno: o terreno da desnecessidade. Isto e, se o desenho constitucional das igualdades, uma vez que delas se deve falar no plural, para delas se falar bem, com as explicações que pela Constituição se encontram esparsas - e de algumas os Srs. Deputados do PSD procuram, naturalmente, curar no sentido da eliminação- e com a riqueza a que alude a Sra. Deputada Assunção Esteves, é uma riqueza sumptuária, devo dizer que é também a riqueza vigente, e não aquela que consta do horizonte projectivo do PSD, que a empobrece substancialmente, por vezes de maneira bastante rude. Pode dizer-se que nesse campo a nossa proposta seria sumptuária e desnecessária, mas isso não nos parece exacto, até por algumas das razões que durante este debate se afloraram.
Uma das interrogações colocadas parece-nos bastante interessam, e registamos a afirmação de que já está tudo no artigo 9.º Note-se que, neste caso, a questão é a de que esse artigo não seja empobrecido, mutilado, invertido e desviçado, sendo interessante que o PSD o diga e que isso fique registado na acta. É interessante que se diga que há direitos - e aí haverá que acautelar que estes não sejam mutilados - e também que o Estado não deve ser o único garante desse princípio, o que é óbvio, desde logo porque o garante dessa questão é aquilo que no fluxo social e na realidade da sociedade se move contra a igualdade e a favor dela, uma vez que não há aqui uma identidade de pontos de vista nem um grande coro que, nas sociedades, se erga até aos céus grilando "igualdade, igualdade!". Há, naturalmente, quem forceje, quem lute e quem trate de fazer "tratos de polé" a igualdade no quotidiano através das diversas formas em que isto se exprime, e é óbvio que não se nos afigura dever ser o Estado o único a assegurar esse objectivo. Agora, em sede constitucional, haverá, naturalmente, que fixar as obrigações do Estado e, neste caso, as suas incumbências.
Devo dizer -isto para responder à pergunta do Sr. Presidente- que não vemos esta questão com um estatuto e um carácter distinto do estatuto das restantes incumbências do Estado a serem exercidas através dos meios que a própria Constituição prevê nos seus termos, dentro do actual quadro e segundo os códigos e as orientações de carácter geral, mais ou menos densificadas, nela própria previstas. Neste ponto, a nossa proposta é o mais chãmente reprodutora do universo conceptual da Constituição e logo da panóplia de meios de intervenção do Estado, o que quer dizer que não estamos situados aqui - desejaríamos nós- no cerne das grandes polémicas que assolam tantos corações e mentes sobre o papel do Estado, o papel da sociedade civil e essa pugna inextricável que os opõe, um ao outro, em termos antitélicos. Estamos a situar-nos - nem mais nem menos - dentro do quadro que precisamente decorre daquilo que é o património hermenêutico da Constituição nesse preciso ponto.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.