30 DE MARÇO DE 1988 73
continuarão a debater. Diversos foram, são e serão os binómios utilizados para o designar. Variáveis, conforme as tradições nacionais, os substratos ideológicos predominantes, os factos que os materializam, a utensilagem filosófica usada. Na linha da precisão conceptual, devida a Isaiah Berlin, é hoje assinalada pela dicotomia liberdade negativa - liberdade positiva. Não vou obviamente expor o meu pensamento teórico sobre o fundo da questão. Procurarei apenas situar a proposta do PCP na razão de ordem do texto constitucional, chamar a atenção para uma conexão decorrente da jurisprudência e propor texto alternativo.
Primeiro, a inserção de tal dispositivo, claramente programático, fragilizaria o alcance vinculativo do artigo 13.º e indirectamente toda a garantia dos direitos de protecção enunciados no título "Direitos, liberdades e garantias". A conceptualização das noções de liberdade civil e liberdade política não deve ser confundida, sob qualquer forma, com o entendimento, necessariamente subjectivo, de quais as condições mais favoráveis e menos favoráveis à realização dos valores teleológicos havidos como subjacentes no plano das diversas ideologias. Não interessa sequer chamar à colação a doutrina do actual Govêrno sobre o binómio justiça-liberdade. Nem imputar ao sistema higeliano a culpa de haver sido adoptado positivamente tanto por Marx e discípulos como por Mussolini e discípulos. Nem o PCP nem nenhum de nós dispõe de qualquer garantia contra a eventualidade de um legislador, distorcendo o dispositivo no plano hermenêutico - e quantas distorções dessas não estarão já ocorrendo -, o fazer aplicar com lesão de legítimos direitos do próprio PCP, a pretexto de que tal lesão constituiria afastamento de um obstáculo à realização da igualdade. Não seria infelizmente a primeira vez na história que formulações de inspiração marxista teriam sido utilizadas como caldo de cultura para a instalação, implantação e consolidação de populismos antidemocráticos.
Aliás o núcleo essencial do valor que o PCP pretende proteger, como disse o Sr. Deputado Jorge Lacão - e peço desculpa de repetir -, encontra-se já consagrado na alínea d) do artigo 9.° da Constituição, através da expressa menção - que aliás se me afigura suficiente - de que e tarefa do Estado promover "a igualdade real entre os Portugueses e a efectivação - sublinho efectivação- dos direitos económicos, sociais e culturais".
Segundo, que - e de outro modo não teria feito esta intervenção - a jurisprudência do Tribunal Constitucional inclui o Acórdão n.° 423/87. Não aprecio neste momento as suas conclusões, que aliás me parecem socialmente convenientes e eventualmente conformes a uma boa política legislativa. Aprecio tão-somente um elemento do raciocínio interpretativo do ilustre relator, o Sr. Conselheiro Monteiro Diniz, que muito admiro como cidadão, intelectual e juiz. Aí se lê:
A dimensão real da liberdade, de todas as liberdades, [...] depende fundamentalmente das situações sociais que permitem ou impedem o seu desfrute existencial como opções reais. A questão deve centrar-se na transformação do conceito de liberdade-autonomia em liberdade-situação, isto e, no significado positivo de liberdade enquanto poder concreto de realizar determinados fins que constituem o seu objecto, não só pela remoção dos entraves que impedem o seu exercício, como também pela prestação positiva das condições e meios indispensáveis à sua realização, [...] A liberdade [...] deve entender-se não como uma mera independência, mas como uma autêntica situação social. [...] O Estado não é um ente alheio aos valores e interesses da sociedade, antes constitui um instrumento ao seu serviço. [...] A neutralidade estatal significa radical indiferença por toda a valorização [...], mas não já enquanto facto constitutivo de uma certa procura social.
Em síntese: "Enquanto dinamizador dos valores e interesses socialmente legítimos que deve garantir e desenvolver", o Estado poderia, sem quebra do princípio de igualdade, proceder às prestações positivas solicitadas pela legitimidade daqueles valores e interesses.
A possibilidade de um tão eminente jurista ter subscrito tal doutrina, não - esclareça-se - a respeito de direitos económicos, sociais e culturais, mas a propósito de direitos, liberdades e garantias pessoais, lançou grande perplexidade no meu espírito.
Explico muito abreviadamente a razão da perplexidade.
O alcance de normas jurídicas tutelares de direitos fundamentais - civis, políticos ou laborais - não deve ser objecto de interpretação emergente de critério axiológico, ditado por qualquer concepção de justiça social ou outra lida como tanto ou mais valiosa. A justiça social, pode, inigualitariamente, ser entendida conforme o critério "a cada um segundo a sua posição". Ou pode, igualitariamente, ser entendida conforme critérios diversos, como "a cada um segundo os seus méritos", "a cada um segundo as suas obras", "a cada um segundo as suas necessidades", "a cada um o mesmo" e porventura outros. As liberdades fundamentais são justas. Todavia, a justiça das liberdades consagradas na Constituição, no título "Direitos, liberdades e garantias", deve necessariamente ser entendida conforme o critério "a cada um o mesmo". No plano das liberdades fundamentais, o direito de cada um deve ser idêntico ao direito de todos os demais. A igualdade, no plano das liberdades fundamentais, é uma igualdade-identidade. Liberdade fundamental quer dizer idêntica liberdade de todos.
Conheço a objeção. A justiça - alega-se - consiste em tratar igualmente o que é igual e desigualmente o que é desigual. Toda a questão consiste em determinar o que, no exercício de uma liberdade, na fruição de um direito ou no alcance de uma garantia, torna um comportamento desigualmente valioso em relação a outro comportamento, uma opção desigualmente valiosa de outra opção.
A vida de um génio é juridicamente mais valiosa do que a vida de um imbecil? Não creio. A liberdade de opinar a favor de uma lei é mais valiosa do que a liberdade de opinar em desfavor dessa lei? Não creio. A liberdade de em Beja ser comunista é mais valioso do que a de ser democrata-cristão a de em Viseu ser democrata-cristão mais valiosa do que a de ser comunista? Não creio. A liberdade de ser a favor da maioria é mais valiosa do que a liberdade de ser contra a maioria? Não creio. A liberdade de professar confissão maioritária é mais valiosa do que a de professar confissão minoritária, não professar nenhuma ou sustentar opiniões contra algumas ou todas? Não creio. A liberdade de um comunista é mais valiosa no Alentejo do que nos Açores? A liberdade de um socialista é mais valiosa em Coimbra do que em Évora? A liberdade de um PSD é mais valiosa na Madeira do que em Portalegre? A liberdade de um democrata-cristão é mais valiosa em Braga do que em Setúbal? Em nada disso creio. A liberdade de ser a favor da justiça social é mais valiosa do que a liberdade de ser contra a justiça social? Não creio. A liberdade de ser a favor da liberdade é mais valiosa do que a liberdade de ser contra a liberdade? Não creio. A liberdade de defender qualquer dessas teses é tão valiosa como a de as contradizer. Mas se as