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1136 II SÉRIE - NÚMERO 37- RC

Esse último acórdão é de importância fulcral para se poder aferir quais sejam os poderes da Assembleia da República, dentro do quadro constitucional vigente, em relação a importantes matérias. É, designadamente, fundamental para se poder situar qual deva ser o conteúdo constitucionalmente obrigatório ou possível do Orçamento do Estado, uma vez que a definição constitucional é susceptível de diversas interpretações. Numa interpretação mais rigorosa, porventura, o Orçamento do Estado deveria circunscrever-se às soluções exclusivamente atinentes à matéria orçamental e não poderia legitimamente servir para trasfegar ou introduzir outras soluções legislativas à revelia das regras comuns da legiferação.

Creio que este ponto deveria merecer-nos alguma reflexão, porque a adopção de uma noção miscigenadora de Orçamento tem sérias implicações. Embora o Tribunal Constitucional tenha dado cobertura a algumas soluções que permitem uma noção alargada do Orçamento, tal noção, se excessivamente alargada, pode conduzir a extraordinárias dificuldades, pode alterar a possibilidade de discussão autónoma e aprofundada de importantes iniciativas e perturbai a própria repartição de competência entre órgãos de poder, dificultando o exercício dos poderes do Presidente da República: imagine-se um Orçamento "infestado" de reformas legislativas de carácter avulso não atinentes directamente a matéria orçamental (coisa que até agora ainda não aconteceu) como forma de ultrapassar o próprio controle preventivo de constitucionalidade em relação a elas, dados os prazos muito exigentes para a entrada em vigor e para a aprovação do Orçamento do Estado; pense-se no clima político e até financeiro que normalmente se cria, a enorme angústia quanto à entrada em vigor do Orçamento, que pode propiciar a celerização indébita de um processo que não deve ser célere senão na medida em que o exija o interesse das finanças públicas, e não os "superiores interesses" do contrabando legislativo... Tudo isto deve levar-nos a reflectir bem sobre as implicações de uma noção alargada de Orçamento.

O regime constitucional do Orçamento viria, por último, a ser objecto de um aprofundamento em torno precisamente da chamada "Lei das privatizações", que deu origem ao Acórdão n.° 108/88, que explicitou as dimensões da proibição de orçamentos paralelos, secretos e não transparentes de gestão puramente governamental, verdadeiros "sacos azuis". Tudo isso tem enormíssimo alcance face ao próprio Orçamento do Estado em vigor, que originou, ele próprio, pedidos de declaração de inconstitucionalidade ao Tribunal Constitucional cujos processos estão actualmente em curso.

Isto significa, sumarizando, que neste momento a aplicação do artigo 108.° que o Sr. Deputado Rui Machete há pouco considerava ainda "em período de maturação de implicações", é extremamente recheada de incidentes que podem pôr em causa a própria realização, o próprio acatamento daquilo que foi opção da primeira revisão constitucional. Devo dizer que, nesta óptica, nos preocupam fundamentalmente dois tipos de dificuldades.

A primeira dificuldade é a decorrente da tentação governamental das chamadas "operações do Tesouro", em catadupa ou em galope, como forma de criação de verdadeiros orçamentos paralelos. Não me dedicarei excessivamente a essa matéria, uma vez que disso dá conta o pedido de declaração de inconstitucionalidade que apresentámos, oportunamente, ao Tribunal Constitucional e que não cabe aqui reproduzir.

Por outro lado, dificuldades decorrem do facto de o PSD ter encontrado recentemente - aliás, com projecção no Orçamento do ano em curso, a Lei n.° 2/88, de 26 de Janeiro - um expediente para alterar a normal repartição de competências entre o Governo e a Assembleia em matéria de definição orçamental, ao criar uma figura denominada "dotação concorrencial" no Orçamento do Ministério das Finanças, com as características de uma verba dita "de valor negativo", que no ano em curso é de 33 milhões de contos. Quanto mais se vai sabendo sobre a aplicação que o Governo tem feito deste normativo mais vêm engrossando as razões que, desde o início, nos levaram a considerar que esta figura não tem a mínima cobertura constitucional. Trata-se de uma forma de iludir a definição de Orçamento contida no artigo 108.°, n.° 1, alínea a), da Constituição, que, abrangendo receitas e despesas, não prevê de forma alguma um tertium genus.

Por outro lado, a concreta conformação desta figura reforça o nosso convencimento do contraste entre ela e a Constituição. A figura é do mais extremo melindre, já que permite ao Governo estabelecer uma geral sobredotação que lhe confere a prerrogativa de subtrair à Assembleia da República as decisões de dotação e de distribuir depois - ele Governo e não a Assembleia -, por um sem-número de rubricas orçamentais, as verbas propriamente ditas, o que significa um verdadeiro e próprio poder ("autorizado" pela Assembleia da República) para que seja o Governo (e não a Assembleia) a repartir as dotações efectivas, onde, quando e como entender. Consideramos que se trata de uma tentativa de diminuir ou de alterar o alcance do preceito aprovado na primeira revisão constitucional, à luz da tal filosofia do Primeiro-Ministro de que "este Parlamento tem poderes que mais nenhum Parlamento tem" e que este Governo, coitado, tem "poderes diminuídos que nenhum outro Governo teria", o que, verdadeiramente, tem pouco a ver com o quadro constitucional e constitui uma interpretação esvaziadora.

É evidente que, por outro lado, esta interpretação conduz a que o próprio défice orçamental decorrente dos montantes previstos de receitas e despesas seja susceptível de ser falseado, o que introduz ainda uma outra distorção e uma outra violação do n.° 6 do preceito agora em debate.

Quanto ao recurso abusivo a operações de tesouraria, ele atingiu o limite quase delirante que foi patenteado na lei dos 49 %, agora declarada inconstitucional nesse ponto, e evidenciou-se de novo, recentemente, numa proposta governamental que foi apreciada no Plenário da Assembleia da República, na passada sexta-feira. A ideia de introduzir elementos de regularização da situação de determinadas empresas públicas, através da criação de uma conta ad hoc à margem do Orçamento foi então sustentada pelo Secretário de Estado do Orçamento, com uma insistência que já é reinsistência (e a que se chama em bom rigor contumácia), usando argumentos sem qualquer arrimo constitucional. Isto significa que o Governo está profundamente empenhado nesta ideia de paralelização, esvaziadora do princípio da plenitude e, naturalmente, da anualidade do Orçamento do Estado.