14 DE OUTUBRO DE 1988 1345
existe e que as leis paraconstitucionais podem ser uma proposta, embora modesta, de suscitar a reflexão de todos sobre o modo de a resolver.
Não há dúvidas -pergunto eu- sobre a compatibilização entre os decretos-leis de desenvolvimento das leis de bases e as respectivas leis de bases, sobre o vício de que possa padecer um decreto-lei de desenvolvimento de uma lei de bases que contrarie essa mesma lei de bases? Não há dúvidas sobre qual é a eficácia real de uma lei-quadro? Ou seja, não é forçoso reconhecer que o sistema jurídico-constitucional português tem assentado na hipocrisia de chamar leis-quadro àquilo que o não é, visto não terem qualquer valor supralegal sendo, na realidade, pari passu, derrogadas por cada lei avulsa que estava suposta subordinar-se a essas mesmas leis-quadro? E quanto ao vício de que enfermam os decretos-leis de uso de autorização legislativa em relação às correspondentes leis de autorização legislativa? Trata-se apenas de inconstitucionalidade indirecta, tantas vezes consideradas pelo Tribunal Constitucional como insusceptível de decisão, de julgamento de inconstitucionalidade? Ou não haverá aqui uma verdadeira e própria inconstitucionalidade directa, resultante da violação da norma constitucional atributiva de competência à Assembleia da República para legislar sobre as matérias da reserva relativa, podendo o Governo penetrar nesse terreno legislativo apenas mediante autorização legislativa, a qual funciona como título habilitador mas também como acto parâmetro e norma densificadora dos limites do uso dos poderes legislativos derivados que ao Governo cabem na utilização de uma autorização legislativa? Ou não estaremos neste caso perante um tipo diferente de ilegalidade? Não é este já um quadro suficientemente relevante para a normalidade da nossa vida legislativa que justifique que haja um esforço de esclarecimento e uma fórmula de clarificação das relações entre actos legislativos de órgãos de soberania? As paraconstitucionais estão inocentes: elas têm todos os defeitos que os Srs. Deputados quiserem, têm talvez até alguns de que ainda não se lembraram e que eu, a título privado, lhes posso adiantar, num gesto liberal e moscovita, como diria o Fernando Pessoa; mas esse que lhe apontam é que não tem. É apenas uma tentativa de contribuir para o esclarecimento de uma questão que já está colocada em cima da mesa. E considero grave que esta Revisão Constitucional não assuma esse problema como seu e não se proponha resolvê-lo.
Quanto à questão da protecção das minorias, Sra. Deputada Assunção Esteves, é um argumento hábil dizer-se que os dois terços são a protecção de algumas minorias das minorias eleitas daquelas que são estritamente necessárias para fazer os dois terços, sendo como tal uma forma da discriminação de outras minorias, das minorias mais minorias. E daqui passa para uma conclusão interessante, que é a de que, no fundo, o que releva na questão das leis orgânicas, das leis reforçadas ou das paraconstitucionais não é a maioria de aprovação mas sim o consenso sobre o procedimento. Os dois terços na nossa proposta são com efeito apenas uma medida instrumental da formulação desse consenso sobre o procedimento. É um afloramento como o seria a exigência da maioria absoluta. Ou seja, o facto de ordenamentos jurídicos como o francês e o espanhol exigirem maiorias absolutas para aprovação das respectivas leis orgânicas, são também meros afloramentos procedimentais decorrentes da lógica política que postula a necessidade de haver consensos alargados sobre um conjunto de matérias consideradas como particularmente relevantes para a conformação de um determinado sistema normativo. Pode-se dizer que é uma exigência processual excessiva, como dizia o Sr. Deputado Carlos Encarnação: estão sozinhos, não há Direito Comparado que vos valha e portanto o opróbio de estarem numa ilha isolados. Mas não tenho medo da inovação e devo dizer que, se outra justificação não houvesse, talvez valha a pena meditar sobre o que tem sido a prática recente do PSD no Governo, maioritário, sozinho, para perceber por que é que, sim senhor, assumo que esta nossa proposta parte também de uma desconfiança recíproca. E digo mais: parte de uma desconfiança do PS em relação ao PSD. É verdade! Mas também vamos mais longe: por que é que existem Constituições? As Constituições não são instrumentos de protecção das minorias? Os textos constitucionais não existem por causa de desconfianças mútuas? Não são as desconfianças mútuas que estão na base da lógica da existência da democracia no mundo inteiro, desde os seus primórdios? A desconfiança dos barões em relação ao poder real, no que concerne à colecta de impostos excessivos para alimentar uma corte luxuriosa, em detrimento daqueles que detinham, que eram terratenentes, não era esta originariamente a forma mais cabal de desconfiança mútua? O Parlamento não nasceu de um acto de desconfiança? Não nos queiram criar complexos de culpa pelo facto de desconfiarmos! A desconfiança, desde que não seja recalcada e que tenha instrumentos institucionais saudáveis para se exprimir, não constitui mal nenhum num regime democrático; é a regra normal de vida democrática de uma colectividade.
Naturalmente que estou de acordo com a Sra. Deputada Assunção Esteves, quando diz que o consenso é sobre o procedimento e não sobre o resultado. Por isso mesmo, nós dissemos que os dois terços eram aferíveis em relação aos princípios fundamentais e não a toda a densificação normativa de uma determinada matéria que possa caber nas leis paraconstitucionais. Perguntar-me-ão: mas onde é que mete a fasquia? Qual é a relevância que isso tem para o grau de operatividade social? Mas essa questão que se coloca relativamente às leis orgânicas, reforçadas ou paraconstitucionais, é a mesma que já hoje se coloca, por exemplo, quanto às leis de bases. Onde é que o Srs. Deputados metem a fasquia na definição de uma lei de bases? Quais são os limites materiais de uma lei de bases nos termos da nossa Constituição? Como é que os Srs. Deputados olham para a Constituição e vêem o artigo 167.°, alínea e), que estabelece ser da exclusiva competência da Assembleia da República (reserva absoluta de competência) legislar sobre as bases do sistema de ensino, dizem que uma coisa tem que pertencer forçosamente às bases do sistema de ensino e outra já nelas não tem cabimento? Fazem-no através de um acto de interpretação normativa, é um acto de hermenêutica jurídica do legislador em primeira mão e, em última instância, do fiscalizador da constitucionalidade do Tribunal Constitucional.
Não creio portanto que o problema, em si, juridicamente seja novo. O que os Srs. Deputados me podem dizer é o seguinte: os senhores estão a alargar desnecessariamente o campo de matérias onde essa opera-