precedeu a Revolução Americana, que precedeu a Revolução Inglesa. É uma pequena "cunha": por que é que o Parlamento português não copia um pouco o parlamento brasileiro? Textos fundamentais do "demoliberalismo" português, como o de Silvestre Pinheiro Ferreira, são editados no Brasil e desconhecidos entre os portugueses!
Dito isto, acrescento mais duas coisas.
Recuso-me, evidentemente, a alinhar na tenaz binária dos que em qualquer polémica visionam uma luta da direita contra a esquerda ou dos reaccionários contra os progressistas, invocando a soberba superioridade do sítio onde estão.
Julgo que um dos mais graves pecados que os homens cometeram no século XX foi o de, à direita e à esquerda, terem justificado totalitarismos e autoritarismos, invocando as boas intenções utópicas dos realizadores destes processos.
O que está aqui em causa, nesta revisão constitucional, julgo eu, é precisamente saber qual é o remédio eficaz que a Humanidade pode ter contra sementes de totalitarismo e autoritarismo. E, muito humildemente, temos de reconhecer que tanto à direita como à esquerda temos as mãos sujas. Todos pecámos e todos temos o dever do arrependimento, muito especialmente nesta pequena Casa lusitana, onde apesar das belíssimas leis de 1867, que aboliram a pena de morte, e das de 1884, que baniram a prisão perpétua, eis que, em nome do Estado, da legalidade, da soberania, da Humanidade ou da Nação, à esquerda e à direita, todas as famílias portuguesas pecaram por acção e por omissão.
As manifestações opinativas sobre a questão do Tribunal Penal Internacional foram, até agora, na minha opinião, emotivamente epidérmicas. As dúvidas e as oposições de personalidades como Pacheco Pereira, Garcia Pereira, D. Manuel Gonçalves Martins ou do Bastonário da Ordem dos Advogados, António Pires de Lima, invocando a nossa cultura humanista, a independência nacional ou o desencanto neomaquiavélico do realismo político, foram suficientemente compensadas, a meu ver, por posições públicas de constitucionalistas como os Professores Jorge Miranda ou Vital Moreira, de sociólogos como o Professor Boaventura Sousa Santos, ou do "bom senso" de alguns ilustres parlamentares que aqui estão presentes.
Curiosamente - e é isso o que eu queria fazer -, poucos compararam a situação constitucional portuguesa com o modelo brasileiro, também preso às mesmas restrições da prisão perpétua, até porque temos vindo a influenciar-nos mutuamente.
O universo do pensamento jurídico e político brasileiro, desde logo, teve como opinião comum, isto é, a opinião dos que pensam de forma racional e justa, a distinção entre princípios e regras constitucionais, admitindo-se a prioridade dos valores da dignidade da pessoa humana e do respeito pelos Direitos do Homem. Os princípios são superiores às regras - há uma hierarquia constitucional.
Enumerei no depoimento que fiz para esta audição - e não vou agora invocar a buchenschaft, a ciência livresca - uma série de autores brasileiros que recentemente vieram alinhar com os argumentos da Amnistia Internacional, da Cruz Vermelha Internacional, de antigos intervenientes no processo de Nuremberga, isolando vozes como a de Jess Helms, presidente da comissão de relações externas do senado norte-americano.
Não venho aqui alinhar nos argumentos de grupos de pressão, como os da Sovereignty International, para recuperarmos para o debate os grandes princípios dos restauradores da ideia de res publica christiana, que agora está laicizada desde S. Tomás de Aquino, ou do jus gentium, como o fizeram os espanhóis e os portugueses da Escola Peninsular de Direito Natural, que estiveram na base, como já disse, dos nossos juristas da Restauração e da gloriosa "revolução atlântica", bem como do actual modelo de Estado de direito.
Srs. Parlamentares, a nossa tradição parlamentar do século XIX deu-nos nomes que continuam esquecidos, como o vintista José Máximo Pinto da Fonseca Rangel, que logo em 1821 edita um Projecto de Guerra contra as Guerras, ou da Paz Permanente oferecido ao Chefes das Nações Europeias, onde isto estava resolvido através do sonho kantiano.
Salientemos o papel pioneiro de Vicente Ferrer de Neto Paiva que, como professor de direito, logo em 1857, na sua Philosophia do Direito, resolvia esta questão.
Assinalemos, para os republicanos não ficarem tristes, o papel de um Bernardino Pinheiro que, com o seu Ensaio sobre a Organização da Sociedade Universal, de 1859-1860, o qual continua esquecido, liminarmente oferecia esta solução.
Em Portugal, todos estes cultores da ideia que agora pretende constitucionalizar-se, sem equívocos, sabiam que a justiça era a mãe do direito (isto não é retórica), que o direito era superior à lei, que a soberania não poderia ser endeusada (isso é uma coisa lá dos franceses, de 1576, do Jean Bodin - quatro anos antes de desaparecermos, foi a soberania que nos matou e foi Miguel de Vasconcelos o primeiro teórico português de soberania), que o Estado também era uma coisa de outro tempo: a primeira vez que o Estado foi "baptizado" foi em 1532, com a publicação da obra de Maquiavel. E, em 1531, onde é que nós já estávamos com os velhos princípios que agora querem regressar!
Seguindo o mote de Fernando Pessoa, a Nação é apenas um meio de criarmos uma civilização superior. Apenas isso, não é o fim, é o ponto de partida. O Estado não é uma coisa, é um processo. E deixem-me que mais uma vez cite Pessoa, num velho texto que eles escreveu contra os prussianos durante a guerra de 1914/1918: o Estado está acima do cidadão - sem dúvida! -; mas o Homem está acima do Estado. Logo, em nome destes princípios, é evidente que me congratulo com a clareza e a coragem de alguns parlamentares portugueses que assumiram sem reservas a adesão ao princípio que considero a semente do verdadeiro direito universal.
A velha ordem internacional, nascida em Yalta, Bretton Woods, São Francisco e Potsdam, essa que fez os julgamentos de Nuremberga, mas que teve de esquecer-se do massacre de Katyn, a tal ordem que se consolidou pela chamada Guerra Fria, se foi simbolicamente derrubada em 1989, ainda não lançou suficientes sementes de esperança para a nova orgânica internacional. Porquê? Porque se mantém em vigor um modelo de Direito Internacional Público que talvez não tenha suficiente justiça para ser efectivo direito, que não tem um mínimo de autodeterminação para se dizer "inter-nacional", nem uma altura adequada de fins para ser público.
Por outras palavras, a nova ordem ainda não pode ter um mínimo de justiça mundial porque o direito que a rege ainda não é suficientemente válido, faltando-lhe os adequados requisitos da vigência e da eficácia, as três dimensões do jurídico indispensáveis para que a justiça não seja impotente.
Infelizmente, temos de concluir que, por enquanto, continuamos a viver em regime de vazio de justiça mundial já que os Estados ainda se assumem como superiores à pessoa humana e as soberanias não querem submeter-se a algo muito simples: à moral e ao direito.