Primeiro, invocamos o Estado de direito e esquecemos que, cá, entre nós, houve Estados que não eram democráticos nem de direito mas que sempre se assumiram como Estados de legalidade - estou a falar do Estado Novo -, acirrando o normativismo positivista na formação dos juristas e inscrevendo no portal dos tribunais o lema do dura lex, sed lex.
Em segundo lugar, houve Estados democráticos que começaram por não ser Estados de direito, que é o nosso caso, na Constituição originária de 1976 - e não vou agora invocar os inimigos da consagração do princípio do Estado de direito na redacção inicial de 1976.
Em terceiro lugar, há Estados de direito que ainda não assumiram a plenitude do Estado de justiça.
O Estado de direito não é uma mera palavra, é alguma coisa mais.
Srs. Deputados, fiz um trabalho de casa, por isso não vou desenvolver muito mais esta minha intervenção inicial. Digo apenas que há uma hierarquia de normas constitucionais e qualquer leitura do nosso texto constitucional que seja marcada por esta postura pode concluir que num Estado de direito como o nosso há uma hierarquia de normas, dado que os princípios prevalecem sobre as regras. Não sou original, dado que foi assim que no Brasil se resolveu a questão exactamente igual à nossa.
Os princípios da dignidade da pessoa humana e da prevalência dos Direitos do Homem não são, no âmbito da nossa Constituição, realidades metajurídicas, dado que, através de cláusulas gerais, positivámos o que de essencial havia nas reivindicações do jusnaturalismo e do jusracionacionalismo, naquilo que hoje deveria dar-se o nome de direito da razão ou de direito universal. E é em nome destes princípios fundamentais que saúdo o desbloquear do texto constitucional português e a sua abertura ao mecanismo do Tribunal Penal Internacional.
Vou concluir, para depois fazer uma eventual troca de impressões, dizendo o seguinte: é evidente que não sou parvo, que tenho os pés assentes no chão. O que está aqui em causa, nesta adesão, é o facto de se se tratar de uma adesão civilizacional. Não vamos resolver nada, porque é evidente que ninguém vai pôr o Sr. Kissinger em tribunal, nem ninguém vai pôr o Sr. Putin em tribunal, mas esta é uma luta pela civilização!
É evidente, e citando Carl Smith, que se houver uma situação excepcional, as decisões prevalecerão sobre a razão, mas este é um elemento subversivo da ordem mundial instalada, esta é uma luta pela civilização, uma luta educativa. Não vamos chegar ao fim dos tempos e à gloriosa vitória da justiça sobre a força, mas podemos dar um bocado de força à justiça se nos soubermos colocar no devido lugar. E o devido lugar é esta técnica - não entro nesta, não sou constitucionalista, não percebo… Até tenho escrito coisas contra este modelo de "código constitucional", pois gosto mais dos actos adicionais. Um qualquer acto adicional que abrisse a porta, a nível de regras, àquilo que a nossa Constituição já tem consagrado nos princípios, resolveria a situação.
Portugal não pode fugir a este combate, a esta luta pela Constituição, a esta luta pela justiça.
Não venho ensinar nada aos Srs. Deputados, porque subscreveria grande parte dos discursos dos que, com coragem, no momento em que a opinião pública portuguesa foi confundida, souberam colocar no devido lugar a hierarquia deste belo princípio, desta bela luta que a Amnistia Internacional, a Cruz Vermelha Internacional e as forças fundamentais fizeram, sobretudo contra a hegemonia e a relutância da actual superpotência, que não quis, numa primeira fase, alinhar com este belíssimo texto.
Em nome da filosofia dos pequenos Estados, em nome do futuro da justiça mundial, tenho crença, esperança e penso que devo saudar os Srs. Deputados por terem, na maior parte dos casos, assumido este princípio da luta da justiça contra a força.
O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Professor, pela sua exposição, pelo seu depoimento.
Para pedir esclarecimentos, inscreveram-se os Srs. Deputados Fernando Seara e Jorge Lacão.
Tem a palavra o Sr. Deputado Fernando Seara.
O Sr. Fernando Seara (PSD): - Sr. Presidente, começo por cumprimentar o Professor Adelino Maltez. Permita-me saudá-lo porque penso que é importante, no âmbito de uma reflexão prévia da revisão constitucional, termos todas as perspectivas da realidade do pensamento político.
A reflexão que nos trouxe, e que já pude ler, é, como sempre, estimulante. Queria saudá-lo por isso, até porque as duas intervenções da manhã, uma muito comunitarista e outra excessivamente constitucionalista, deixam-me sempre com a angústia do positivismo. Partilho das suas perspectivas, como é público e notório, e permitia-me colocar-lhe duas questões concretas, que são questões normativas e que obrigarão V. Ex.ª a descer ao normativo.
A primeira questão, ou reflexão, tem a ver com o artigo 15.º e a proposta formulada neste âmbito, principalmente com a noção de nova comunidade e de necessidade de concretização daquilo a que se pode chamar - e a que o Sr. Professor chamou - a "revolução atlântica".
V. Ex.ª entende ser constitucionalmente urgente a consagração dos princípios constantes do projecto de revisão constitucional do PSD acerca do artigo 15.º, sem entrar, aqui, nas questões delimitadas há pouco pelo Professor Jorge Miranda sobre a não necessidade de discriminação entre os cidadãos da República Federativa do Brasil e dos demais cidadãos de língua oficial portuguesa ou sem entrar nas questões do alargamento dos mecanismos de excepção aos membros do Governo à totalidade dos juizes do Tribunal Constitucional e não apenas ao Presidente do Tribunal Constitucional. Ou seja, esta nova comunidade que o globalismo suscita deve ou não ser entendida como uma urgência para os constituintes no sentido da inserção no espaço normativo português de uma cláusula deste tipo? E sendo certo que essa realidade da "revolução atlântica"… Não há "revolução atlântica" sem que o direito acompanhe os factos, sob pena de a disfuncionalidade ser real. Este é o primeiro aspecto e a primeira reflexão normativa (permita-me a ousadia) que suscito.
A segunda reflexão tem que ver necessariamente com essa lógica da justiça versus força, que o Professor delimitou e que, no fundo, está subjacente na consagração do Estatuto de Roma do TPI.
Gostaria agora de fazer uma pergunta concreta, Professor Adelino Maltez. Para além da querela das personalidades que suscitou e do facto de ignorarem, por exemplo, que Portugal está vinculado por uma recepção automática das resoluções do Conselho de Segurança ou dos tribunais ad hoc da Jugoslávia, do Burundi e Ruanda, a questão do TPI não implicará, por exemplo, a necessidade daquilo a que se pode chamar a recepção no direito ordinário penal e da cooperação penal portuguesa do conjunto dos crimes que o Estatuto de Roma suscita? Ou seja, o TPI também não implicará, com