16 DE MARÇO DE 1971 649
Nada, no entanto, impedirá que sejam levados à sua apreciação e aprovação outros tratados, além destes.
Daqui resulta que os tratados em geral, incluindo os que versem matéria legislativa, serão aprovados, não pela Assembleia, mas pelo Governo. Dado que os tratados pórticos e os tratados sobre matérias reservadas são raros e excepcionais, ter-se-á que o processo quase legislativo da aprovação parlamentar dos tratados virá a ser utilitário muito espaçadamente.
Ora o sistema da simples aprovação governamental não se justifica, como sistema-regra, em relação a tratados, isto é, em relação a convenções internacionais negociadas pelo Chefe do Estado ou por representantes diplomáticos seus e destinadas a ser por ele ratificadas. Esse sistema deve, em princípio, reservar-se para os tratados cuja entrada em vigor seja urgente e não possa, portanto, esperar pelo desenvolvimento do lento processo parlamentar de aprovação para ratificação, e, dentro dos acordos, para aqueles que forem negociados pelo Chefe do Estado ou por representantes diplomáticos dele. Tais acordos versam matérias de administração técnica ou, simplesmente, como é corrente dizer-se, "matérias administrativas". Estas serão as que implicam uma regulamentação pormenorizada e susceptível de frequentes alterações, muito pouco das predilecções do parlamento e bastante afastadas das suas capacidades específicas. Tais compromissos são, por outro lado, de pouco ou nenhum interesse para a opinião pública. De qualquer modo, sendo o parlamento uma instituição que trabalha com lentidão, só tarde é que ele conseguiria aprovar todas as convenções internacionais deste tipo, as quais, na hora actual, são cada vez mais numerosas, dado o desenvolvimento das relações internacionais e o âmbito cada vez mais largo da intervenção do Estado na ordem interna 18.
O Governo encontra-se em muito melhores condições do que a Assembleia para fazer um juízo definitivo sobre a conveniência de o Estado se obrigar por convenções deste tipo. Como já se disse noutro lugar deste parecer, a constituição efectiva consente, inclusive, que elas sejam pelo Governo negociadas e concluídas, no exercício do seu próprio treaty making power, sem incumbência do Chefe do Estado, procedendo, como o soberano na monarquia absoluta, no uso de uma espécie de ius representationis omnimodae ou de plenitudo potestatis, no domínio das relações internacionais. Se isto é possível e é licito, justificado é, paralelamente, que, quando, no mesmo domínio de assuntos, intervenha o Chefe do Estado ou representante diplomático seu, se dispense a aprovação parlamentai e baste a aprovação governamental.
Crê a Câmara que é esta a solução que se deve consagrar formalmente na Constituição. Não se vê que ela acarrete uma grande sobrecarga de trabalho para a Assembleia Nacional - em primeiro lugar, porque os tratados nunca são em cada ano numerosos, e em segundo lugar porque a sua aprovação é sempre muito mais expedita do que é a votação das leis, não havendo, como não há, a possibilidade da aprovação simplesmente parcial e a consequente faculdade de emenda: a aprovação ou a rejeição terão lugar in terminis. Em toda a medida em que se restrinja a intervenção parlamentar neste domínio, substitui-se a democracia pelas formas tecnocráticas do poder 19.
Não se argumente em sentido contrário, com o exemplo da Constituição francesa de 1958, segundo a qual só carecem de aprovação parlamentar, além dos tratados políticos, os tratados que se ocupem de matérias de natureza legislativa [os tratados "qui modifient des dispositions de nature legislative" (artigo 53.°)]. Esta orientação deve-se a que, naquela Constituição, se admite que o Executivo, fora das matérias a que se refere o artigo 34.°, reservadas à lei, possui um amplo poder regulamentar independente (artigo 37.°) - o que não sucede entre nós. No nosso direito não existe um "domínio próprio do Governo", em que este intervenha por via regulamentar. Intervém, sim, mas no uso das suas faculdades legislativas, paralelamente com a Assembleia Nacional, que sempre pode revogar os decretos-leis do Governo e tem mesmo de os ratificar, se publicados no período de funcionamento dela.
106. Em resumo, sugere a Câmara que no artigo 91.°, n.° 7.°, se diga que compete à Assembleia Nacional "aprovar os tratados internacionais".
Isto significará que o Governo, no domínio dos tratados, só terá uma intervenção por motivos de urgência, como se verá mais adiante, ao analisar-se o artigo 109.°, n.° 2.°, e o seu § 4.° Ao Governo caberá, sim, aprovar para ratificação os acordos negociados pelo Chefe do Estado, directamente ou por plenipotenciários seus - e serão, segundo se colhe da prática internacional e dos ensinamentos da doutrina, os acordos técnicos, os acordos comerciais provisórios ou de curta duração, os acordos que não acarretem novos encargos para o Tesouro e os acordos que estabeleçam a interpretação ou a forma de dar execução aos tratados.
Não é, entretanto, viável dar uma definição constitucional rigorosa do âmbito material dos acordos, em relação ao dos tratados. A própria doutrina não o tem conseguido: "Les auteurs qui ont risque des essais de définition n'ont pas pu éliminer toutes les contraditions et toutes les obsourités." 20.
Na medida em que o Governo transcender o domínio da competência do Chefe do Estado e da Assembleia Nacional, assume as suas responsabilidades políticas. Mas, nos termos da prática internacional, a vinculação do Estado pelas convenções concluídas sem a intervenção directa ou indirecta do Presidente da República, sem a ratificação dele em seguida a aprovação parlamentar, em princípio não será por isso menos internacionalmente inquestionável.
Artigo 91.°, n.° 10.° (eliminação deste número)
107. Explica o Governo, no relatório da proposta de lei, que, com a supressão do actual n.° 10.° do artigo 91.°, se visa apenas deixar claro que tanto a Assembleia Nacional como o Governo podem conceder amnistias. Parte-se implicitamente do princípio de que não há quaisquer dúvidas sobre a natureza legislativa material das amnistias: "estas representam exercício do poder legislativo que à Assembleia cabe por força do n.° 1.° do artigo 91.°" Se assim é, "mostra-se inútil".
Simplesmente, não é assim tão inquestionável como à primeira vista parece a tese de que o acto de amnistia é um acto materialmente legislativo.
18 Para se fazer uma ideia do ritmo em que um Estado se vincula por convenções internacionais, recorde-se que a França em 1947 celebrou uma em cada dois dias úteis.
19 Cf. J. Buchmann, À la recherche d'un ordre international, Lovain, Paris, 1957, p. 188.
20 P. F. Smets, La conclusion des accords en forme simplifiée, Bruxelles, 1969, p. 142.