16 DE MARÇO DE 1971 651
disposto no artigo 92.°: "as leis votadas pela Assembleia Racional devem restringir-se à aprovação das bases gerais dos regimes jurídicos", o que, tendo em conta o preceituado na segunda parte deste artigo, veio, mais exactamente, a traduzir-se em que as leis podiam restringir-se a isso, e naturalmente a isso se restringiriam. A parte "técnica" dos regimes legalmente estabelecidos, os pormenores de disciplina das matérias reguladas na lei, essa caberia, em princípio, a outro órgão constitucional, estruturado de forma a poder mobilizar os conhecimentos especializados necessários para elaborar as normas complementares necessárias. Esse órgão seria o Governo, o qual, nos termos do artigo 108.°, n.° 3.°, disporia, precisamente para este efeito, de faculdades regulamentares.
Entendeu, entretanto, o legislador constituinte que um certo e restrito número de matérias, consideradas mais importantes, deveria ficar reservado à Assembleia Nacional para ser disciplinado em todo o pormenor, sob a forma de lei 24. Foram elas as indicadas na redacção original do artigo 93.°
A verdade, porém, ó que o sistema ideado e consagrado na Constituição de 1933 sofreu as suas distorções, e, ao abrigo da letra, que não do espírito, do n.° 2.° do artigo 108.°, sob pressão das realidades, o Governo se veio tornando, logo a partir da enteada em vigor da lei fundamental, no legislador normal, entrando a Assembleia Nacional a funcionar como órgão legislativo de excepção. O domínio da crise económica e dos problemas sociais nos anos 30 e a intervenção do Estado em todos os sectores da vida durante e após a 2.ª Grande Guerra exigiram uma numerosa legislação de índole mais ou menos especializada, que à Assembleia Nacional, no aliás curto período de cada sessão anual, e tendo, para mais, outras atribuições de índole não legislativa a realizar, não foi possível elaborar, ainda que limitando-se à construção de simples princípios gerais ou orientadores.
Perante a prática constitucional instaurada, perante a norma que por via consuctudinária assim se criou, o problema que se pôs deixou de ser o de negar o Governo como legislador concorrente da Assembleia Nacional para passar a ser o de lhe vedar a possibilidade de intervir legislativamente num domínio de competência legislativa reservado à Assembleia.
Foi esse o alcance da alteração de redacção que, no artigo 93.°, foi introduzida pela Lei n.° 2009, de 17 de Setembro de 1945, a qual, para pôr a "verdade formal" de acordo com a "verdade real", veio, na modificação que introduziu ao artigo 109.°, n.° 2.°, a instaurar expressis verbis o sistema que faz do Governo o legislador normal para a metrópole. Enquanto até essa altura o objectivo do artigo 93.° era vedar ao Governo tratar certas matérias importantes sob a forma de regulamento "independente" e obrigar a Assembleia Nacional a versar esses assuntos sob a forma de lei, depois de 1945 o escopo de tal norma constitucional, com a redacção que lhe veio a ser dada, passou a ser o de fechar a porta ao decreto-lei como forma normal 25 de disciplina básica de tais matérias 26.
110. A Lei n.° 2048 deu, das matérias reservadas, nestes termos, à Assembleia Nacional, um elenco mais curto do que aquele que na versão primitiva do artigo 93.° se fazia das que não podiam assumir a forma de regulamento, isto sem embargo de a Câmara Corporativa ter sugerido que ele fosse ampliado (parecer n.° 13/V). Mas a lista veio, finalmente, a ser acrescentada de outros assuntos pela Lei n.° 2100, de 29 de Agosto de 1959.
Na proposta ora em apreço visa-se alargar ainda mais o quadro das matérias que, no plano da sua disciplina jurídica geral ou básica, hão-de ser tratadas pela Assembleia Nacional sob a forma de lei.
De um modo geral, a decisão sob cada uma das propostas adições há-de depender de se concluir ou não em cada caso que se justifica que a disciplina básica da matéria deve, em princípio, ser estabelecida pelo órgão legislativo mais representativo, porque directamente eleito, que ó a Assembleia Nacional. Tudo essencialmente estará em saber se essas matérias são altamente relevantes para a comunidade, se cada uma delas só obterá a disciplina que mais bem aceite há-de ser pelos cidadãos se for discutida em público pela assembleia dos representantes do País - e se o interesse público não pode sofrer gravemente pelo facto de uma legislação "às claras" ou pelo facto de se ter de aguardar a sua demorada deliberação no Parlamento. Considerada esta directriz, vai a Câmara analisar seguidamente as propostas alterações neste domínio.
111. a) O relatório da proposta de lei justifica que a matéria da nacionalidade entre no quadro das matérias reservadas, com duas razões: o facto de as normas basilares sobre nacionalidade terem natureza constitucional e o facto de se tratar de matéria que directamente contende com os direitos fundamentais e que se mostra susceptível de ser regulada por forma sistemática.
Afigura-se à Câmara que não há inconveniente na atribuição à Assembleia Nacional da competência exclusiva para elaborar as bases gerais do regime da aquisição e perda da nacionalidade portuguesa. O assunto é, realmente, de alta importância para a comunidade - tanto que se pode efectivamente dizer que se trata de matéria constitucional. Na verdade, ó corrente a doutrina de que são de direito constitucional, materialmente entendido, as normas que fixam ou circunscrevem o âmbito ou a extensão de um dos elementos essenciais do Estado, a sua população, fixando os critérios da pertinência a ele das pessoas físicas e jurídicas. Por outro lado, não se vê que a disciplina básica de tal matéria perca pelo facto de não ser em princípio confiada ao Governo, nem que seja de recear que a clássica lentidão do processo parlamentar provoque demoras indesejáveis. Tratando-se, para mais,
24 Não repugnaria entender-se que o Governo, sobre essas matérias, pudesse editar regulamentos de execução - entendendo-se por isso apenas as normas que se limitassem, estritamente, a interpretar as normas legais ou a integrar as suas lacunas -, e não normas que completassem ou desenvolvessem as normas legais, numa parte voluntária ou deliberadamente deixada por disciplinar pelo legislador, com pormenores de aplicação ou de organização situados no interior daquelas normas legais. Se se quisesse chamar às normas do Governo que contivessem estes pormenores regulamentos "independentes", então o que deveria dizer-se era que o artigo 93.°, na sua versão inicial, não facultava que sobre as matérias nele indicadas o Governo fizesse regulamentos independentes.
25 A legislação do Governo, nas matérias reservadas à competência da Assembleia, ficou limitada aos casos em que a Assembleia Nacional o incumbisse de as disciplinar (artigo 91.°, n.° 13.°).
26 No parecer desta Câmara de 16 de Junho de 1945 (Diário das Sessões, n.° 176, de 16 de Junho de 1945, suplemento) admitiu-se que eventuais normas complementares das normas legais (expedidas no exercício da competência exclusiva da Assembleia Nacional, fixada no artigo 93.°), necessárias para colmatar as suas lacunas, deveriam passar a assumir a forma de decretos-leis. Excluir-se-iam, sempre, com este objectivo, os decretos regulamentares. Mas a Câmara, no seu parecer n.° 13/VII (Actas da Câmara, Corporativa, n.° 58, de 12 de Maio de 1959), afirmou expressamente que, estabelecidas (nessas matérias) as bases gerais dos respectivos regimes jurídicos pela Assembleia Nacional, o Governo poderia desenvolvê-las ou completá-las, quer sob a forma de decretos-leis, quer mesmo sob a forma de decretos regulamentares.