650 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.° 67
Os nossos constitucionalistas têm, é certo, tomado esta doutrina como segura, desde Marnoco e Sousa a Marcello Caetano.
Sendo a amnistia um acto do poder social, que na plenitude da sua soberania extingue as condenações a que deram lugar certas infracções, deve pertencer ao parlamento [...] A amnistia é [...] geral, aplicando-se sempre, não a um caso particular mas a uma categoria de casos; e objectiva, aplicando-se sempre não a indivíduos determinados, mas a um grupo determinado de infracções, quaisquer que sejam os seus autores 21.
A amnistia é matéria de lei, pois consiste no perdão e promessa de esquecimento de toda uma categoria de crimes 22.
Em geral, em abono da "teoria legislativa", costuma lembrar-se que este acto de clemência se traduz, afinal de contas, numa revogação, embora temporária e parcial, de determinadas disposições da lei penal.
Mas a verdade é que não falta quem, essencialmente com o argumento de que se trata de uma manifestação do poder punitivo, sustente que o acto de amnistia tem natureza jurisdicional ("teoria jurisdicional"), quem veja nele uma manifestação de um poder administrativo, pois se não trataria de mais que de uma renúncia, por parte do Estado, ao exercício da execução da pena, a qual é, materialmente falando, tradução da função administrativa ("teoria da renúncia"), e, por último, quem entenda que o acto da amnistia tem natureza política ou "governamental" ("teoria política"). E para este último entendimento não falece sequer a boa razão de que os actos em que ela se exprime só à primeira vista são gerais, porque, no fundo, do que se trata é de uma derrogação da lei em relação a pessoas determinadas ou tecnicamente determináveis na hora da prática desse acto ou no momento até ao qual a amnistia se destine a produzir os seus efeitos, e de que, em substância, o que é objecto de clemência são infracções em ^concreto e individualizáveis. A generalidade e a abstracção referem-se necessariamente, ao futuro, e traduzem uma impossibilidade de previsão individualizada - e a amnistia refere-se obrigatoriamente ao passado. Do que se trata, fundamentalmente, portanto, é de um acto plural "de governo", de uma série de "actos de governo", acidentalmente reunidos numa única declaração de vontade. Tais actos são fundamentalmente actos contra legem 23, cuja prática só pode ter lugar na base de uma habilitação constitucional específica, uma vez que, não se justificando em termos de justiça, antes por outras considerações a ela estranhas (trazer a calma ao Pais, fazer participar certas pessoas, culpadas de certos crimes, na alegria suscitada por eventos particularmente faustos da Nação), ofendem o princípio da igualdade jurídica. Não é, pois, sem justificação que tais actos já foram, entre nós, e ainda são em certos outros países, da competência do Chefe do Estado (monarca ou presidente da República), a quem cabe, em princípio, a competência para a prática dos actos políticos ou "de governo". De qualquer modo, é a Constituição que tem de dizer qual é o órgão da soberania que há-de dispor desta faculdade de actuar contra legem, que não é, material, mente, uma faculdade legislativa. A Constituição de 1911 no seu artigo 27.°, n.° 11.°, retirou essa competência ao Chefe do Estado (Carta Constitucional, artigo 74.°, § 8.°), para a conceder ao Congresso, não se limitando, e muito bem, a destituir o Chefe do Estado desse poder. Se o fizesse, em rigor, nenhum outro órgão poderia conceder amnistias. O que fez foi transferir uma competência "política" ou "governamental" de um para outro órgão. As amnistias passaram, por via disso, a constituir "leis formais", a assumir a forma de lei, sem terem a natureza de lei. A Constituição de 1933 retomou a solução que na de 1911 se perfilhara, quanto à atribuição da competência para conceder amnistias, conferindo-a, no n.° 10.° do seu artigo 91.°, à Assembleia Nacional, que a exerceria sob a forma de lei. Simplesmente, como inicialmente apenas no uso de autorizações legislativas ou nos casos de urgência e necessidade pública, e, a partir de 1945, de um modo geral, o Governo poderia fazer decretos-leis sobre as matérias em que a Assembleia Nacional pode fazer leis, entendeu-se, correctamente, que o Governo, sob a forma de decreto-lei, poderia, tanto como a Assembleia Nacional, sob a forma de lei, conceder amnistias. A supressão do actual n.° 10.° do artigo 91.° envolveria, em rigor, tanto a supressão da competência da Assembleia Nacional como a do Governo para concederem amnistias.
A referência autónoma ao poder da Assembleia Nacional não é, pois, uma simples sobrevivência histórica, algo de excrescente e de supérfluo: em boa técnica, essa referência deve subsistir, servindo para que tanto a Assembleia Nacional como o Governo conservem esse poder.
Em conclusão, ante as divergências doutrinais sobre a natureza dos actos de amnistia, e porque é, pelo menos, muito duvidosa a sua natureza legislativa, não vê esta Câmara vantagens de qualquer ordem na supressão fio actual n.° 10.° do artigo 91.°; antes vê nisso possíveis inconvenientes.
Artigo 91.°, n.°s 10.°, 11.° e 12.°
108. Trata-se de nova numeração, requerida pela supressão do n.° 10.° deste mesmo artigo. Dada a posição que a este último propósito a Câmara toma, não há lugar para esta alteração de numeração.
Artigo 93.° (corpo do artigo)
109. Na versão inicial da Constituição, e segundo a ideia que a ela presidiu, a generalidade da função legislativa cabia à Assembleia Nacional (artigos 91.°, n.° 1.°, e 92.°). O Governo só legislaria no uso de autorizações legislativas ou nos casos de urgência e necessidade pública (artigo 108.°, n.° 2.°), portanto, excepcionalmente. Pagava-se, como se vê, apesar de tudo, um grande tributo à concepção clássica, segundo a qual a lei se identifica com a vontade geral expressa pelo parlamento.
Simplesmente, também se partiu ao mesmo tempo da ideia de que seria, em regra, muito difícil à Assembleia Nacional, se quisesse ocupar-se do conjunto da obra legislativa, e dado que o seu funcionamento é intermitente, que é complicado o seu processo de trabalho e que não ó constituída por técnicos da generalidade das matérias a regular, antes por pessoas, em princípio, competentes apenas para dar a solução das grandes questões sociais, económicas e jurídicas (matters of general competence), passar além dos princípios gerais das reformas legislativas, das bases gerais dos regimes jurídicos. Daí o que ficou
21 Marnoco e Sousa, Constituição Política da República Portuguesa. Comentário, 1913, pp. 441 e segs.
22 Marcello Caetano, A Constituição de 1933. Estudo de Direito Político, 1956, p. 98.
23 É, no fundo, esta a doutrina de Laband (Befehlstheorie), segundo o qual "der Gnadeakt ist ein Befehl contra legem, ein Veto gegen der Lauf von Gesetz und Eecht". No mesmo sentido, outros autores citados em Edgar Uhle, Die Amnistie nach altem und neuem Gnadenrecht, 1935, p. 58.