276 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 64
O Estatuto do Trabalho Nacional define a propriedade «imposição da natureza racional». Quere dizer que a propriedade é uma exigência da própria natureza humana, porque por ela o homem afirma a sua soberana espiritual.
É mester, portanto, que todos os homens tenham de uma forma efectiva êsse direito.
A propriedade é não sòmente o meio que o homen tem de satisfazer as suas próprias aspirações, mas ainda o de afirmar a sua soberania espiritual.
Quando o homem perde o direito de dizer «isto é meu», pregunto: onde fica o homem?
Se a propriedade é uma exigência da natureza humana, o homem, para viver como homem, deve ter, de alguma sorte, o direito efectivo de propriedade particular.
Como fazer essa distribuição?
Vamos regressar ao democratismo económico de Esparta ou adoptar uma das formas de socialização onde só perde com a propriedade a assistência e a própria dignidade humana pela pobreza colectiva e pelo ilotismo universal? Creio que ninguém desta Assemblea perfilha estas formas regressivas. Outra é a nossa doutrina.
O homem recebeu com a terra a actividade para a fecundar e sujeitá-la a todas as suas necessidades. No mesmo dom, o homem recebeu a propriedade do solo e a propriedade do trabalho, uma e outra ao serviço do seu próprio destino.
Com a propriedade do solo, o homem afirma a sua soberania espiritual; com a propriedade do trabalho, o homem exerce essa soberania.
Mas aqueles que não tem nem a propriedade do solo nem a propriedade do trabalho? As crianças orfas, os doentes, os inválidos velhos, sem qualquer dessas propriedades, não terão também o direito de propriedade?
No nosso direito cristão encontramos esta propriedade constituída pelo sobejo de uma e outra.
Antigamente dizia-se que a assistência se fazia pelos sobejos da fortuna e do tempo e pelo coração e pelo espirito. O sobejo é, na verdade, um património dos pobres.
A quem pertence o direito de dispor dêsse sobejo?
Nós reconhecemos um duplo direito de propriedade, o direito de gôzo e direito de distribuição.
No direito de gôzo o homem dispõe absolutamente daquilo que lhe é necessário à realização dos seus fins. Quanto aos sobejos, pertence-lhe o direito de os distribuir pelos pobres, a quem pertencem. Mas os dois direitos fundem-se num só e constituem a grandeza e elevação da propriedade.
Êste direito de distribuição pertence, portanto, ao proprietário. De contrário ele será entregue nas mãos do Estado; mas se a propriedade vai abdicar desta função distribuidora do património dos pobres, abdica da sua mais elevada grandeza, indo despojar-se, assim, daquilo que porventura constitue, sob certos aspectos, a sua maior segurança. Entregar, portanto, nas mãos do Estado êste direito de distribuir, e não sòmente renunciar a mais alta prerrogativa de administrador dos bens dos pobres, que a propriedade confere, mas ocorrer o risco de perder o próprio direito de gôzo.
Nós sabemos que, através dos séculos, sempre que a propriedade transige nessa abdicação, vem imediatamente a mão do Estado invadir e tomar o sobejo, e como a assistência do Estado é uma assistência mais cara, atrás do sobejo vai o próprio objecto do direito de gôzo, o que importa, por consequência, a ruína da mesma propriedade.
Mais ainda: nós sabemos que o Estado, qualquer que seja o sistema ou o regime que revista, tem sempre a tendência para o abuso, e, sempre que êsse abuso cresce e se multiplica, e em prejuizo da própria pessoa humana que êle se exerce.
Importa, pois, erguer barreiras aos abusos do Estado. O direito de propriedade é um dêsses baluartes, de que se cerca a pessoa humana na sua defesa. É preciso, pois, não a abalar, mas conduzi-la ao cumprimento exacto da sua função assistencial.
Se o direito de gôzo e distribuição se unem na mesma pessoa, entregar parte dêle nas mãos do Estado é renunciar a todo êle, isto é de alguma sorte promover a estatização da propriedade. Pertence, pois, à propriedade pagar a assistência, não por impostos, mas por doação. Além desta função, há outras que são atribuição da propriedade, a saber: distribuição do trabalho e criação de produtos. Quando falo em distribuição de trabalho, não quero referir-me à expressão jurídica das suas relações com o Capital, mas ao trabalho que a propriedade distribue nas crises de desemprêgo sem rendimento reprodutivo e em forma de assistência.
Por outro lado, a propriedade não tem apenas a função de criar quaisquer produtos, mas aqueles que, embora sem lucro seu, melhor respondem às necessidades e exigências do bem comum.
Esta função tem características nitidamente assistenciais.
A propriedade realiza, pois, por natureza, as primeiras e fundamentais actividades assistenciais.
E, Sr. Presidente, tenho pena de não poder, por motivos que esta Câmara conhece, prestar, do alto desta tribuna, tam largamente como merecia, homenagem à lavoura portuguesa, que tem sabido compenetrar-se do seu verdadeiro papel na distribuição do trabalho, não só criando trabalhos produtivos, como também criando outros trabalhos ùnicamente como uma forma de assistência e não pròpriamente com uma função lucrativa. A lavoura de Portugal tem sabido nesta hora corresponder aos apelos do Poder no sentido de ajustar as suas produções às necessidades comuns.
A propriedade faz também, assim assistência. E quando a propriedade deixa de cumprir a sua missão perde-se; dá-se na ordem social o mesmo que se dá na ordem biológica: é a função que cria o órgão. Quando a função cessa, desaparece o órgão. Todos sabemos que as grandes convulsões que se têm dado em todo o mundo
têm sido, em muitos casos, provocadas pelo facto de a propriedade esquecer a sua função.
É preciso reintegra-la nas suas verdadeiras funções, nas suas nobilíssimas funções, para que ela se robusteça e volte a realizar as actividades de caracter essencial que lhe são próprias.
Parece-me, portanto, Sr. Presidente, que quanto à parte económica da assistência, ela pertence aos particulares e não ao Estado.
Quanto à função de assistência, isto é, quanto a prestação da assistência pròpriamente dita, a quem pertence? Ao Estado?
Creio que não, porque o fim do Estado é de facto o bem comum, ensina-no-lo o Santo Padre Pio XI, como já aqui se disse, e ensinaram-no todos os Papas e todos os sociológicos católicos e tantos outros que o não são.
Na verdade, o bem comum é o fim da sociedade ou do Estado, mas o bem comum realizável, isto é, que cada pessoa possa realizar por si própria.
O bem comum significa o conjunto de bens de ordem temporal e de ordem moral, o complexo de valores humanos, para que o homem possa por si próprio realizar o seu mesmo destino.
Nós vimos aqui, mais de uma vez, nesta Assemblea um não sei que misterioso receio por esta palavra «supletivo».
Lembro-me, Sr. Presidente, que, quando El-Rei D. Manuel II deu o regimento para os Hospitais de