21 DE MARÇO DE 1944 277
Lisboa, pôs no frontespício esta legenda: Spera in Deo, et fac bonitatem; como se dissesse: pratica o bem, exerce a caridade, despoja-te a ti próprio, dá-nos a tua própria pessoa; quanto ao Testo, confia em Deus.
El-Rei D. Manuel II não fazia mais do que exprimir o fundo da própria Igreja, de que era filho querido e dedicado.
E que nesta matéria de «supletivo» nós verificamos até mesmo o grande problema, o problema máximo da criação, o problema máximo do mundo, o problema máximo da humanidade, que é a salvação do homem no tempo e ira eternidade, Deus parece ter-se pôsto como «supletivo». E, na verdade, a própria graça de Deus não se dá senão com o carácter supletivo, e a obra de salvação é a obra de cada um de nós, é uma obra que cada um de nós tem de fazer por si próprio; cada homem é com o auxílio de Deus, e na obediência à Sua Lei, artífice do seu próprio destino.
Em bom rigor, além das funções supremas de direcção, o Estado não tem outra função senão «supletiva», visto que a pessoa humana entra em sociedade para procurar nela o que por si própria não pode conseguir.
Não sendo assim, o Estado não pode fazer assistência nem completa, nem perfeita: não pode fazer assistência completa, porque, na melhor das hipóteses, só pode fazer justiça, que poderemos chamar externa. Mas a justiça integral tem outras exigências. Para ser completa é mester que intervenha a caridade. A caridade é, não apenas a esmola, mas o complemento da justiça. E a justiça na altura, na extensão, na profundidade. E esta caridade é um direito dos pobres.
O trabalho é o exercício da própria actividade humana. Por isso o homem, quando trabalha, exerce sempre uma actividade espiritual e uma actividade afectiva. Lança no produto não apenas o músculo, o suor do rosto, mas a própria inteligência, mesmo o coração.
No produto que êle lança na comunidade vai, de alguma sorte, a sua pessoa toda.
Vai também nêle o nobre exemplo de virtude, de generosidade, de sacrifício, de amor, de desinterêsse!
Êsse homem, quando não tiver trabalho, tem direito a receber aquilo que deu.
O Estado podia dar-lhe uma assistência estandardizada.
Na ordem da assistência a estandardização é sempre uma forma incompleta, porque lhe falta a caridade; se ele deu inteligência e coração, tem direito a recebê-los quando deles precise. Essa obra só se realiza, não dando, mas dando-se, isto é, fazendo o dom de si próprio, que tal é a caridade.
Ora a caridade não pertence ao Estado, porque o Estado não tem coração. O Estado não se dá nem pode dar-se.
Nós sabemos através da história a obra grandiosa da caridade, enxugando lágrimas, criando lares; ela criou o lar da pátria e estendeu-o a todos os continentes.
É imperfeita: uma das bases da proposta com que todos concordámos nas sessões de estudo é a que respeita à assistência preventiva. A prevenção pode fazer-se no plano higiénico e económico, mas tem de fazer-se principalmente no plano moral.
Há muitos flagelos, muitas desgraças que têm à raiz apenas a transgressão de uma lei moral. Não falo já do alcoolismo, das doenças secretas, da prostituição; refiro-me a tantas outras misérias que criam tantas vítimas, melhor dizendo, que criam o sujeito da assistência. Falo agora no plano ida ordem moral. Efectivamente; entre a ordem física e a ordem moral há uma conexão íntima, uma simbiose perfeita. A pobreza do corpo arrasta muitas vezes à pobreza da alma; mas, em geral, é a pobreza da alma que leva à pobreza do corpo, quere dizer, uma grande parte dias deficiências e males que a assistência procura corrigir radicam, mais ou menos pròximamente, em deficiências? e males de ordem imoral.
Nós não somos cartesianos, nem em filosofia nem em assistência, e eu creio que o cartesianismo é um êrro ainda maior em assistência do que em filosofia.
As nossas Misericórdias realizaram uma grande obra praticando as obras de misericórdia corporais e espirituais. E que as obras de misericórdia espirituais completam as obras de misericórdia corporais, e suo delas preventivas. Na verdade, é fazer assistência preventiva, e da melhor, dar bons conselhos, ensinar os ignorantes, castigar os que erram e assim nas demais.
Ora a moral é um dos limites do poder do Estado.
A quem pertence, portanto, fazer assistência? A comunidade? Mas a comunidade é uma abstracção, e o direito da assistência é um direito positivo e concreto. Pertence, pois, à comunidade, mas nos agrupamentos naturais em que ela se realiza. O primeiro dêsses é a família; o segundo, a corporação. Pertence em primeiro lugar à família prestar assistência. A família é não só uma solidariedade de interêsses, mas de vida. E um organismo em que cada órgão comunica à vida comum, e dela recebe, a própria vida. E no coração das mãis que Deus golfa a vida e a dedicação, que são bases primárias da assistência e necessárias à conservação e aperfeiçoamento da vida.
Mesmo à face da ciência, não há lactário, creche, asilo, hospital, albergue que valha o lar ordenado e sadio, física e moralmente.
E, porque assim é, todos os códigos das nações civilizadas cometem à família os encargos de assistência.
Todos os modernos estatutos assistenciais a ela regressam. Por outro lado, a assistência na família não só evita grandes males morais, mas fortalece-a nos laços de afectos necessários à sua estabilidade, à sua ordem, a sua felicidade.
A família deve ser não sòmente um campo de assistência, mas também objecto de assistência. Com efeito, num país onde a família está caída, num país onde a família está decadente, onde há tanta família sem recursos para satisfazer as necessidades normais, onde tanta família está incapacitada de exercer a assistência, não é quási um sarcasmo atribuir à família o cumprimento de um encargo que ela não suporta? Decerto, nós temos aqui propugnado nesta tribuna a defesa da família pelo alívio dos encargos fiscais que a oprimem.
A política fiscal, escolar e do registo civil precisa de ser urgente e profundamente revista, para dar à família a necessária robustez, que lhe permita cumprir a sua função assistencial. Quando a família não puder cumprir a sua missão, não é ao Estado que competirá substituí-la, mas à corporação, que de algum modo é seu prolongamento e deve ser sempre a sua defesa.
Falo na corporação, não só no sentido corporativo mus no sentido de empresa, que é também uma solidariedade de interêsses.
A nossa linguagem cristã, hoje tam deturpada e tam mal compreendida, designa o chefe da emprêsa por esta palavra tam rica de conceito: patrão, que é apenas uma modalidade de pai, para significar que dentro da empresa que lhe cabe o dever de defender e assegurar, em todas as emergências, a vida dos que com êle cooperam na sociedade produtiva. Só depois pertence à freguesia, ao concelho, à província, por dever de vizinhança, fazer assistência.
Sr. Presidente: quero terminar com uma confirmação de tudo quanto acabo de dizer: é a confirmação da experiência.
Quando a Igreja estabeleceu a assistência sob o ponto de vista particular e corporativo, não precisou de se inspirar nos velhos exemplos do passado.