O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

10 DE DEZEMBRO DE 1946 47

nada que conseguisse jamais corromper a sua probidade mental, nesta feira franca do elogio mútuo e do compadrio que é a vida literária portuguesa, nunca a sua inteligência lucidíssima, aparelhada com uma cultura filosófica e histórica excepcional, traficou com as ideias.
Por tudo isto, o facto de a Academia Portuguesa da História ter excluído Alfredo Pimenta do seu seio, com a invocação de uma generalidade de disposições estatutárias que implica, cavilosamente, a atribuição ao mesmo escritor de mau comportamento público, moral e civil, leva-me a pensar, Sr. Presidente, que ela preza ainda menos a sua dignidade do que a dignidade alheia; quanto a mim, de hoje por diante julgo prudente descrer da História feita por tal Academia da História.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Armando Cândido: - Sr. Presidente: sempre tive o maior interesse em conversar com esses rústicos que não respiram as poeiras do Mundo e não trazem, nos olhos, outra névoa dourada que não seja a das suas aspirações ingénuas.
São como as árvores de Tagore - não deformam a verdade.
Um dia, sentado na soleira de basalto ilhéu, onde costumava, nesse, tempo, encontrar dois amigos puros, ouvi estas palavras que não me passaram: já não há quem se deixe matar pelo bem de todos.
Sr. Presidente: eu já devia ter trazido à Assembleia Nacional o nome do engenheiro Artur do Canto Resende. Foi quando outras vozes se ergueram aqui e falaram de Timor.
Tinha presente o sorriso habitual da sua face sempre aberta aos rumos claros e às atitudes cavalheirescas; não perdera o toque do seu coração, sempre dado às amizades sinceras e à largueza bondosa; não esquecera o timbre da sua alma, sempre longe dos interesses mesquinhos e das paixões vis; não varrera de mim a lembrança do homem leal e destemido, mas, cumprindo-me tratar da sua memória, eu que conhecia as asas da sua vida, tão cheia de sonhos generosos, tinha gosto em poder seguir-lhe os voos no espaço vencido e na luz conquistada.
Para mim, uma das surpresas da última guerra foi a de os japoneses não terem sufocado o instinto para deixarem trabalhar a inteligência. Nem, ao menos, o verniz de uma civilização digna de qualquer nova ordem e da razão de se ser gente num mundo com as vinte luzes de vinte séculos.
Quando penso em Timor e na reafirmação de Portugal tirada de mais um sacrifício de sangue, não sei se devo maldizer a sorte por nos ter ferido ou louvar o destino por ter reconhecido em nós capacidade de sobrevivência.
A nossa História tem destes fundos de tragédia para realce do significado de Pátria.
Os invasores não empregaram só o método selvagem do assalto à fazenda alheia e do desprezo pela vida dos vencidos; usaram a mesma duplicidade de atitudes com que outros desejam agora confundir e perturbar o nosso tempo.
Dizendo-se amigos dos portugueses, incitavam contra nós as hordas indígenas do Timor holandês.
Apregoando tolerante respeito pela bandeira das quinas, ateavam, na sombra, o incêndio que a deveria queimar, de vez, no Oriente.
Calcada a nossa autoridade, lacerada a nossa disciplina, a vida em Timor tornou-se angustiosa.
Incapaz de se conter, por muito tempo, dentro da mesma ventura, utilizando a vida como um dom que se restitui, Artur do Canto era um eterno cavaleiro de ímpetos indomáveis, sempre em demanda de mais riscos e do mais perigos.
Como sempre, não mede o sacrifício pessoal, aceita, na hora mais difícil, o cargo de administrador de Dili, afronta com nobreza o cinismo do intruso, protege com galhardia a vida e a honra dos seus compatriotas, bate-se com as armas da razão e da coragem, luta a toda a hora e põe tal desassombro e virtude na sua acção, que o riso amarelo do Sol Nascente chegou a parar diante do herói.
E é medir-lhe a grandeza: à sua volta há gente que não tem que vestir - faz um monte com as suas roupas e dá-as aos necessitados.
Direita ao fundo da alma, vê a miséria dos que não têm que comer: abre a sua bolsa e dá-lhes, em dinheiro, tudo quanto pode.
Até mesmo quando o levam para a ilha de Alor e o matam, dia a dia, num campo de prisioneiros, quem se despoja da sua aliança de casamento para que em troca todos obtenham algum milho são é o engenheiro Artur do Canto.
Sr. Presidente: comparando o nada do que se possui com o nada do não querer, o padre António Vieira notou que este nada encerra maiores riquezas.
O homem que no dia 24 de Fevereiro de 1945 foi a enterrar na «ilha maldita» do mar da Sonda, descalço e quase nu, tem direito ao prémio do seu não querer.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Além da paga do céu, nós, que não sofremos os insultos que o vexaram e as penas que o torturaram, é que temos de lhe dar neste Mundo a justa recompensa.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - O rosário por onde o engenheiro Artur do Canto Resende rezou antes de morrer foi feito pelas suas mãos em madeira da terra onde fechou os olhos para sempre. Tinha uma conta a mais esse rosário tosco, por causa de uma promessa que fizera.
Seja essa conta a mais do rosário do engenheiro Canto para nós, para a nossa promessa de sermos em tudo dignos do culto que lho devemos, no qual há-de figurar, estamos certos, o carinho oficial pelos que deixou som bens materiais, os bens que em seu poder tanto serviram para provas de nobreza e actos de caridade.
Ao desembarcarmos - conta o padre Aníbal Bastos, capelão das forças expedicionárias que reocuparam Timor- um nome andava na boca e no coração de toda a gente, de toda aquela pobre gente que tão prolongada e dolorosamente suportara o domínio estrangeiro.
Proferiam-no com respeito os velhos, quase o rezavam as criancinhas, e todos, quaisquer que fossem os seus sentimentos religiosos ou a sua ideologia política, protestavam abertamente o seu respeito, a sua gratidão e a sua saudade por aquele que tão bem e tão heroicamente soubera personificar o verdadeiro sentimento português.
E naquela memorável manhã em que se comemorava o primeiro aniversário da sua trágica morte eu vi nas lágrimas e nos suspiros de toda aquela multidão que se comprimia dentro da desmantelada igreja de Mataele que, de entre os mártires de Timor, o primeiro, o maior de todos, fora o engenheiro Artur do Canto Resende».
Sr. Presidente: Artur do Canto, como nós, os vizinhos de berço o conhecemos, nasceu em Vila Franca do Campo, na ilha de S. Miguel.
Nasceu numa vila reedificada sobre escombros.
Na base estão os soterrados do terramoto de 1022.
Há ossos de mártires nos alicerces da vila renascida.