10 DE DEZEMBRO DE 1946 63
do homem junta-se a acção de factores naturais, permanentes ou quase, que tornam menos livre a vida da agricultura.
E porque a indústria tem maior liberdade de movimentos, possibilidade de mais rápida manobra, menor peso de factores de amortecimento, se julga poder coutar, em igual intensidade de acção, com mais rápida melhoria de rendimento no ensino industrial do que no agrícola, com subida mais nítida na oficina do que na terra, quanto à capacidade de bem produzir e de bem remunerar o trabalho humano. Na indústria sabe-se pouco, na agricultura sabe-se mal; e nestas palavras se definem as duas frentes desta realidade defeituosa, que o ensino técnico, lentamente, precisa demolir.
Mas, apesar desta diferença de características, desta maior docilidade da indústria às forças directivas, há que confessar que a acção do ensino técnico tem, em qualquer dos casos, um papel vastíssimo, imprescindível, mas não preenche todo o campo do fomento da produção.
Antepõe-se-lhe, certamente, o problema geral da educação, que se alarga por extensíssimo domínio, desde a supressão dos 50 por cento de analfabetos, que ainda temos, à divulgação de certos ideais de beleza, de aprumo, de realismo, ideais que. ao mesmo tempo, fazem o homem espiritualmente melhor e criam nele necessidades que lhe dão mais alta categoria de factor económico - ideais que nos levam a todos à tríplice posição de produzir, de consumir e de estar mais perto de Deus.
A Câmara Corporativa, onde se reúnem em harmonia perfeita interesses morais e materiais, como tal expressamente considerados no seu Regimento, espera que se não leve a afirmação à conta de heresia; antes espera que se medite no propósito que a anima de ajudar a corrigir certo vício de temperamento ou de educação que conduz tantas vezes os que têm algumas luzes a uma formação vazia de sentido, onde as facetas utilitárias da vida. certos actos a que se chama humildes só porque são refractários à abstracção, têm o valor de coisas menos dignas, que se afastam sempre que se pode ou se escondem quando são imperiosas.
Aqui. neste desequilíbrio entre o abstracto e o concreto, entre a fantasia e a realidade, nesta pendente mais íngreme para o devaneio do que para a observação, mais para o acidental do que para o sistemático, existe um dos mais graves problemas pedagógicos portugueses - muitíssimo mais grave do que discutir certos pormenores de reduzido ou nenhum alcance com que às vezes se gasta mais tempo do que merecem.
Desta fuga do real, do que talvez possamos chamar inadaptação ao planeta, na hipótese generosa de poder haver outras realidades físicas algures no Universo, vem a insuficiência do nosso ambiente económico e, sobretudo, industrial. Sem encantos para larga parcela da pequena camada culta, que apenas por excepção lhe dirige um pensamento (quase sempre quando recebe o dividendo), e só por maior excepção lhe concede um afecto, a nossa indústria vive em grande parte do interesse das camadas médias e inferiores da população, num esforço, num testemunho de vida activa que merece registo e talvez gratidão, mas que não supre, salvo em casos de particular intuição, a falta de luz em que frequentemente se desenvolve. Por isso, como regra, a indústria é dispersa e atrasada, tem vistas de limitado horizonte, movimenta-se em acanhadas fronteiras de capital e de técnica.
Nesta média, manifestamente baixa, nesta atmosfera de escassas aspirações, o esforço do ensino técnico profissional não brilha como devia, porque a sua acção faz lembrar o trabalho ingrato de comprimir um gás muito rarefeito-
É sabido que muitos dos alunos das actuais escolas industriais não aceitam de boa vontade a situação de operários. Dir-se-ia haver certa incompatibilidade entre a arte de bem limar e o conhecimento da raiz quadrada; quase todos os iniciados nesta matemática, que presumem alta, buscam ser desenhadores, traçadores, empregados de escritório, de preferência a ser ferreiros ou torneiros; e poderia supor-se à primeira vista haver neste fenómeno a expressão de antagonismos entre uma estulta fidalguia de raça e as imperiosas exigências científicas das modernas artes mecânicas. Só é pena que nem mesmo essas exigências, que alguns consideram tão duras, façam acalmar os que se esfalfam a repetir que a técnica desgraça o homem e o reduz à condição de mero instrumento mecânico.
Mas a questão do desvio dos diplomados, observada mais de perto, conduz a outro género de conclusões. O defeito é menos da escola ou da sua população discente do que do meio exterior.
A escola, qualquer que seja o seu tipo ou a eficiência do seu ensino, confere sempre ao aluno, salvo em casos de estreiteza mental, certo alargamento das exigências intelectuais, certo alteamento de critério na selecção de valores; e com o simples contacto do professor, que o ensina, que o julga, que o estimula ou que o repreende, com o direito que lhe vem de saber mais, o aluno habitua-se a compreender que o mestre ou o chefe, longe de deverem ser uma tutela imposta pela fatalidade ou por defeituosa organização da sociedade, devem ser antes consequência natural da escala do mérito, cujos degraus se sobem como prémio do esforço posto em subi-los.
E possível que o aluno verifique a breve trecho que a regra não é isenta de desvios; mas reconhecerá, sem dúvida, que o desvio não invalida, nem de longe, a linha mestra do sistema, por muito que pese aos niilistas de todos os tempos.
Este aluno, saído da escola com esta formação, precisa de encontrar no exterior ambiente adequado ao saber que adquiriu e à mentalidade que criou mas é de recear que lho não dêem muitas das organizações onde poderia hoje procurar trabalho.
Na maioria das pequenas actividades, mais do que dispersas, pulverizadas, sem quadros técnicos superiores, o principiante saído da escola achar-se-á subordinado a um patrão ou a um mestre pouco cultos, que lhe louvarão mais que deite a mão a um saco para ajudar uma descarga do que apresente uma sugestão para simplificar um fabrico ou melhorar um serviço - coisa que se couta como lenda maravilhosa da América ou do centro da Europa, onde há operários que têm ideias que os superiores utilizam, ideias pelas quais recebem prémios ou melhorias de situação.
A chave deste segredo, ao contrário do que parece, não depende só do nascer dessas ideias, que na maioria dos casos são ilusórias ou ineficazes; o êxito está principalmente em haver os tais superiores, efectivamente superiores, que seleccionam, que adaptam, que completam, que tiram de uma simples sugestão o sentido útil que ela contém; o êxito está em haver um ensino técnico elementar que estimula o engenho e haver também uma organização onde há cabeça e mãos. onde esse engenho é capaz de florir.
O nosso principiante, entrado nas pequenas indústrias, muito dificilmente encontra o mesmo estímulo ou a mesma ajuda; e não se julgue que o tratar-se de pequenas actividades tira ao quadro valor quantitativo, porque, como são numerosíssimas, o ter cada uma reduzido pessoal não impede que abranjam em conjunto talvez metade ou mais do proletariado português.
Nas organizações de maior vulto o problema do enquadramento do operário em quadros técnicos devida-