386 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 79
-me de boa vontade pura a opinião expressa no relatório da proposta, segundo a qual o novo plano do estudos seria inexequível em edifícios como os que são presentemente utilizados.
Não faço considerações a este respeito, tal é a evidência da afirmação. Desejo sómente salientar que as inevitáveis deficiências de um ensino ministrado em condições materiais de acentuada pobreza, como aliás acontece em muitas escolas do ensino técnico espalhadas pelo País, nem sempre são interpretadas em suas verdadeiras causas. Daí a injustiça com que II ao raro se aprecia o esforço dos que exercem a função docente, que, fatalmente, não podem colher em ambiente tão despido os resultados que estavam dentro dos seus desejos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas abandono considerações desta ordem para me referir a inovações que convém salientar.
Pouco será o que poderei dizer e nem a todas elas farei referência; outros oradores as salientaram já com mais justeza e lhes lixaram o valor em mais elevados e apropriados termos.
Como introdução ao ensino que é propriamente técnico profissional, institui-se agora um ciclo preparatório, que o articula com o ensino primário.
Pretende-se ver neste ciclo a dupla virtude de retardar, como convém, a iniciação do aluno na aprendizagem de natureza profissional e do lhe dar, neste intervalo, umas tintas gerais de cultura.
Com esto retardamento da entrada nos cursos em que já impera a tecnologia presta-se obediência às correntes que afirmam o carácter de instabilidade de muitas aptidões que, manifestadas pelas crianças nas suas primeiras idades, pareciam de fixidez duradoura.
Essa instabilidade nada mais é do que a confirmação do que Baungarten designa por transmutações.
Thorndike, por sinal um pouco pessimista a tal respeito, comunga nestas mesmas ideias, depois de ter acompanhado a vida profissional de grande número de crianças saídas das escolas. Os resultados que observou levaram-no à conclusão de que as provas do orientação profissional inicialmente manifestadas não tiveram seguro valor preditivo no sucesso da futura profissão.
Evitam-se, portanto, os inconvenientes de decidir demasiadamente cedo de uma carreira futura, embora conservando os alunos em pleno estudo, que servirá como que de formação geral. E diga-se que não haveria qualquer prejuízo ainda mesmo que a entrada nos cursos profissionais se fizesse um tudo nada mais tarde. Há sempre a recear as consequências da puberdade, porque ela pode originar disposições novas. Na verdade, como a crise pubertária é determinada por um desequilíbrio funcional, perfeitamente normal, os elementos e as funções que intervêm em qualquer acto não estão suficientemente coordenados para uma realização perfeita.
Daqui resulta naturalmente que as aptidões inicialmente manifestadas para uma profissão podem apresentar um carácter instável, que é preciso ter em conta.
Assim, encontramos por vezes, e por sinal sem grande estranheza, casos em que há mudança de profissão, mesmo depois de conseguido o diploma do habilitação para uma ou outra bem diferente. Pode, por exemplo, ver-se instalado no comércio um indivíduo diplomado pelo ensino técnico industrial, ou até em escritório de fábrica um outro que se diplomou em escola agrícola. O caso deverá ser atribuível, em grande parte, à referida instabilidade das aptidões que de princípio foram manifestadas na escolha da carreira.
Por isso se diz que o desenvolvimento das aptidões poderia traduzir-se por uma curva ondulante, resultante de fases de desenvolvimento seguidas de fases de paragem e até de regressão.
Mas, se este curso preparatório é um retardador necessário e útil para a entrada nos cursos profissionais, já não posso acompanhar sem reservas a hipótese que se estabelece do ele um dia vir a desempenhar a função de vestíbulo de acesso a todas as escolas secundárias. Tal qual, se prevê e com as características que se lhe apontam, afigura-se-me ser um pouco arrojado o cometimento.
Reconheço as vantagens que derivam, para quem vai para o liceu, de se servir das mãos com agilidade para a utilização de qualquer ferramenta, como se diz no parecer, mas, como essa, outras habilidades há que não seriam também para desprezai, embora se não relacionem com o ensino técnico.
O que me faz criar dúvidas é a finalidade de um e outro ensino, tanto mais que no segundo parágrafo da base II da proposta se declara expressamente que «o ensino assumirá, na medida conveniente, características de orientação profissional e os programas e os tempos destinados a cada uma das unidades docentes poderão variar de escola para escola, em correspondência com as condições naturais e económicas da respectiva região, dentro dos limites que assegurem ao ciclo de ensino valor educativo equivalente».
Daqui se poderá concluir que ascenderiam ao liceu alunos com diferentes bagagens de conhecimentos, porquanto a averiguação desse tal valor educativo equivalente» nunca passaria, na transição de uma para outra escola, de simples aspiração expressa no Diário do Governo.
Com tal parecer não quero, evidentemente, afirmar oposição ao estabelecimento de um grau de ensino que constitua acesso às escolas secundárias. Seria até esse um processo de descongestionamento dos liceus.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O reparo feito é consequência do confronto de estruturas e finalidades dos ensinos liceal e técnico.
Para se chegar à posição que no relatório se anuncia necessário se torna um estudo muito cuidadoso, para que se não caia em erro que mais tarde faça lembrar com saudade o que anteriormente se encontrava estabelecido.
Ao curso preparatório deseja ligar-se ainda, como já dissemos, a vantagem de dar uma preparação cultural para quem siga cursos profissionais. Só é de aplaudir que assim seja, e nem outra poderia ser a opinião de quem, como eu, há já longos anos exerce funções docentes num ramo de ensino em que a cultura geral é a grande finalidade.
Devo declarar, todavia, que tenho muitas hesitações ao falar de cultura, porque me parece que facilitamos demasiadamente a interpretação do termo.
A cultura, por ser uma disposição intima do espírito, não pode confundir-se com bagagem de conhecimentos.
Ela corresponde, na ordem intelectual, ao que é o carácter na ordem da vontade.
Isto não significa que o liceu seja o único santuário da cultura, mas tão-sòmente que o termo parece empregado com uma generalização que só a boa vontade poderá permitir, porquanto a verdadeira marcha para a cultura não consiste sómente em carregar de noções o cérebro dos alunos.
Referindo-me ao ciclo preparatório, eu preferiria substituir o vocábulo por um outro cujo conteúdo ideológico se identificasse não com o que se traduz na expressão «pré-aprendizagem geral», que me parece, neste caso, vazia de sentido? apesar de citada no decreto-lei que criou a escola de ensino técnico na vila do Barreiro, mas antes