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12 DE FEVEREIRO DE 1947 529

E dá vontade de perguntar se legislar assim é calcar a liberdade individual, que outros rodearam de palavras vistosas e nós enchemos de realidades fecundas.
Há quem ataque a medida, dizendo que ela é inútil para os crimes confessados e provados e que o Ministério Publico não está indicado para requerer a instrução contraditória.
Farte-se, evidentemente, de duas proposições mal seguras: a primeira não vê a dificuldade de um critério justo na separação dos casos susceptíveis do instrução contraditória dentro da forma mais grave de processo; a segunda amarra-se ao passado e continua imaginando o Ministério Público a influir-se gostosamente com as provas da acusação e a triturar, para deitar fora, as provas da defesa.
Uma força nova enche o espirito dos tribunais, e eu vivo ainda no satisfeito orgulho de ter pedido algumas vezes, como delegado do Procurador da República que fui, a absolvição de réus cuja inocência me pareceu afirmar-se durante o julgamento.
De resto, se é a lei que manda recolher activamente as provas da defesa e prosseguir com elas em busca da verdade, é norma da magistratura portuguesa obedecer aos imperativos da lei e aos escrúpulos da consciência.
Mais um propósito evidente: o de conduzir o julgador à integridade da sua função.
Enquanto agente do Ministério Público, muitas vezes me interroguei a mim mesmo sobre a utilidade do exercício do meu cargo: aparência de magistrado independente com poderes de comando próprios; actuação constante de subalterno reduzido ao simples ofício de promover as diligências necessárias.
Julgava-me então requerente oficioso de formalidades prescritas na lei, e, embora ficasse alguma margem para a inteligência e para a deliberação pessoais, a inferioridade prática da posição era manifesta, deprimente, incompreensível.
Revigorando um velho conceito de funções paralelas o independentes, o decreto-lei n.º 35:007 prepara e anuncia a separação completa das duas magistraturas - a judicial e a do Ministério Público.
A instrução preparatória passa a ser dirigida pelo agente do Ministério Público, obrigatoriamente presidida por ele nos processos de querela e correccionais.
Liberta-se o espírito do julgador de predisposições porventura ganhas na fase de recolha das provas.
Isola-se o juiz na pureza da sua função jurisdicional.
A calma de julgar deixa de ser perturbada pela luta de conseguir a verdade, pela veemência de investigar.
É enorme e inegável este avanço.
Mas há que pôr algumas objecções ao decreto-lei. E aqui o aviso prévio leva-nos, talvez, a precipitar a crítica sobre falhas da reforma, que o legislador, decerto, conhece e se propõe, com tempo, remediar.
Atribui-se, e bem, ao Ministério Público a larga competência de dirigir a instrução preparatória que forma o corpo de delito e «reúne os elementos de indiciação necessários para fundamentar a acusação».
Mas a instrução preparatória é, exactamente, o alicerce de todo o edifício processual, e a capacidade de dispor dos elementos de prova, difícil contra as evasivas e as dificuldades criadas pêlos imputados, excede a reduzida experiência dos delegados do Procurador da República novos e acabados de sair da folha oficial, com 1.200$ de vencimento ilíquido, fora os actuais suplementos.
Outro prejuízo:
Durante os anos em que fui delegado tive tempo de sobra para ver que não há função mais sacrificada e mais aproveitada para tudo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Ponho o quadro:
A comarca do Funchal, por exemplo, com duas varas, ambas com cível e crime. Um delegado único. Além dos processos dos dois tribunais, os processos de liquidação do imposto sobre sucessões e doações; as reclamações ordinárias e os recursos extraordinários respeitantes ao imposto de sisa; os recursos extraordinários interpostos pelo director de finanças, com presidência aos actos de avaliação e deslocações frequentes pela área das outras comarcas; membro nato da comissão distrital de contas da Junta Geral do Distrito Autónomo, implicando a obrigação de dar pareceres e vistos; juiz adjunto do Tribunal do Trabalho; membro nato da Junta Autónoma dos Portos, com voto consultivo e, pelo menos, uma reunião semanal; direcção da cadeia; fiscalização da tesouraria judicial, uma escrita imensa, com muitos livros e muitos documentos...
Que sei eu... Sei que estou cansado e não posso dizer agora se é de recordar ou de enumerar tantos serviços, tantos lugares de representação e de exercício grátis. Nesse tempo apeteceu-me escrever as «24 horas do Ministério Público». A dificuldade estava em possuir ou poder dispor da hora para escrever o livro.
Nesta altura assume a presidência o Sr. Deputado Antunes Guimarães.

O Orador: - Mas repare-se: agora é pior, muitíssimo pior. O agente do Ministério Público ouve as testemunhas, recolhe as provas, dirige a instrução preparatória, recebe ainda as denúncias e tem de suprir, na maioria das comarcas, a falta de polícia judiciária.
É humanamente impossível; humanamente irrealizável.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Quero abrir aqui um parêntese para o encher com toda a minha admiração pêlos que servem na magistratura do Ministério Público. Trabalho excessivo, agruras materiais, preocupações, responsabilidades: o sempre o mesmo zelo, sempre a mesma nobreza.
Não é difícil ser-se digno quando nos sentamos em cima da boa arca herdada ou do farto monte reluzente. Difícil é não ter a riqueza do Mundo e ter a riqueza do carácter; não possuir dinheiro e esmagar o dinheiro; ganhar menos do que o suficiente e levantar a cabeça acima dos que têm mais do que o bastante; difícil é ser pobre e ter o heroísmo de ser honrado.
Mas há um perigo a denunciar:
Despreza-se a cultura e o respeito pela inteligência. Junqueiro dizia que a Nação não é uma tenda, nem um orçamento uma Bíblia. Há agora quem discorde e se disponha a afirmar que a Pátria não é de Herculano ou de Antero, mas do comerciante Araújo e do capitalista Seixos.
O perigo é este: foge-se da magistratura. Não há delegados do Ministério Público em dezasseis comarcas do País e dez estão preenchidas com interinos. Os novos não abraçam esta carreira.
Nunca foram abundantes os mártires voluntários. Hoje pior.
Quem há aí que se sujeite a trabalhar demais e a ganhar de menos?

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Discorrendo sobre a melhor maneira de se atingir uma posição eminente, certo magistrado, depois de referir a inteligência, os empenhos ou os milagres como meios eficazes, observa «que a grande maioria é bem sucedida porque começa a vida sem dinheiro nenhum».