566 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 89
queremos ser coerentes com a atitude que se toma quando se pretende obter a defesa de indústrias que pelas suas condições especiais precisam de ser amparadas.
Temos de defender o cinema português de todas as concorrências reais em todos os aspectos que seja justo fazê-lo, porque é assim que se procede em toda a parte quando se quer proteger uma indústria nacional das grandes organizações económicas internacionais que pretendem definitiva mente esmagar as indústrias dos pequenos países, para a conquista sem disputas dos respectivos mercados.
O Sr. Melo Machado: - Parece que deve ser indispensável, como o é em todo o Mundo.
O Orador: - Sr. Presidente, posto isto, permita-me V. Ex.ª que eu entre agora no aspecto social deste problema, com muita pena de o não poder fazer senão por forma breve, bem contrária à sua efectiva importância.
Há um provérbio francês que diz assim: Le diable porte pierre. Até o diabo é capaz de trazer uma pedra para a construção do edifício que ele gostaria de ver completamente derruído.
Não posso desligar-me desta expressão proverbial francesa ao propor-me citar uma expressão de Lenine com a qual, adaptando-a a Portugal, concordo inteiramente: "De todas as artes, a mais útil para a Rússia é a arte cinematográfica".
Lenine viu desde 1917 a importância construtiva ou destrutiva do cinema. Publicou então um trabalho, em que se lê aquela expressão, e que todos os técnicos consideram verdadeiramente notável. Foi traduzido para francês e publicado numa revista que teve grande divulgação por todo o Mundo, a revista Lê Móis. Simplesmente, o volume em que vinha publicado o estudo de Lenine é hoje raríssimo no Mundo, porque ao saber que esse trabalho se publicara em tradução francesa, a embaixada soviética em Paris adquiriu todos os exemplares que pôde encontrar. Sabiam que o cinema é uma arma poderosíssima para o bem e para o mal e desejavam, com alguma ingenuidade, que o resto do Mundo o não suspeitasse.
Isso tem sucedido, aliás, como se sabe, a muitas outras coisas russas...
Na realidade, nenhuma arte, nem a própria arte literária, possui as condições de penetração, de informação e de deformação aliciantes que possui o cinema. Entra pêlos olhos, na precisa expressão da palavra, faz-se entender até quando é desconhecida a língua que se fala na tela - faz-se entender pêlos próprios movimentos -, é capaz de arrastar para o bem ou para o mal. É uma arma que obriga a esforços de legítima defesa, ou que obrigará, por outro lado, a toma-la para o legítimo ataque às forças do mal.
Votou-se nesta Câmara uma lei que proíbe as crianças e a juventude de frequentarem cinemas, estabelecendo as condições em que poderiam fazê-lo.
Sempre me pareceu inútil essa lei, por generosas que fossem as suas intenções: não podia deixar de ser inútil desde que não se tomassem ao mesmo tempo precauções para se garantirem às crianças e à juventude a frequência de bom cinema. Proibi-las, somente, de frequentar o cinema que existe e é, na máxima parte, mau ou impróprio de tais idades, não basta: será necessário oferecer-lhes satisfação à curiosidade que leva a vencer todas as dificuldades para ver o movimento da acção na tela.
E era inútil, porque o foi: porque não chegou nunca a poder executar-se; nem sei quais seriam as condições necessárias para que um Ministro da Educação pudesse exigir de um Ministro do Interior a mobilização dos policias para que essa lei se aplicasse.
Quem tem filhos sabe como lhe foi difícil, ou lhe foi impossível a certa altura, evitar que eles frequentassem cinemas que não deveriam frequentar; a polícia pública não foi mais apta neste aspecto do que a polícia doméstica de cada um.
Eis o que nos leva a sublinhar ainda mais a necessidade do cinema a que possam ir sem escrúpulos homens, mulheres, crianças, raparigas e rapazes; bom cinema: em que sentimentos e pensamentos susceptíveis de erguer as almas não sejam excepção.
Sabemos que é mais difícil, até porque é mais difícil fazer obra de arte pura do que fazer obra de arte mesclada de todas as tentações sedutoras à parte animal de todas as criaturas. No cinema, como nas demais artes...
Se, julgo, a literatura romanesca, por exemplo, é hoje caracterizada, mais do que por uma certa forma literária, por uma certa falta de vergonha predominante, não será com ser mais fácil ao artista o fazer-se ler sofregamente quando expõe todos os casos asquerosos da vida entorpecida do que se procurasse levantar uma grande figura, por exemplo, ou um grande ambiente moral, como ainda é costume, graças a Deus, na maior parte das famílias portuguesas?
É mais fácil; e é verdadeiramente necessário possuir talento de excepção para conseguir fazer obra de arte, ao mesmo tempo aliciante e criadora, com sentimentos nobres, quase sempre singelos, alheios por isso aos contrastes que dominam a imaginação.
É assim na arte literária; é assim no cinema.
Sr. Presidente: graças a Deus que o nosso País anda infinitamente atrasado na evolução espantosa da dissolução moral. Mas não há dúvida de que a posição que o cinema tomou, e era inevitável que tomasse, a não sor que se proibisse pura e simplesmente, contribuiu excepcionalmente para a dissolução dos costumes.
O Sr. Querubim Guimarães: - Mas não há uma censura?...
O Orador: - Há uma censura; mas quando o que há a cortar ó muito, e se corta alguma coisa, julga-se que se cortou demais; e o que fica é bastante, todavia, para fazer mal.
E temos visto, por isso, deixar entrar constantemente, a par de alguns filmes admiráveis, muitos outros que são a defesa constante, pertinaz, de pontos de vista perfeitamente adversos aos interesses do espírito português, da moral cristã, da verdade religiosa e da tradição nacional.
Eis por que em primeiro lugar nos assiste a obrigação de contrapor a tais filmes outros que correspondam à nossa vida, ou onde se respire espírito português, ou que, ao menos, representem o mais elevado do que lá por fora se realiza.
Creio que poucas vezes se definiu tão bem como no decreto-lei a qualidade de filme português. "Serão considerados filmes portugueses - segundo o artigo 10.°, para efeitos da protecção estabelecida neste decreto-lei - aqueles filmes que obedecerem cumulativamente às seguintes condições: serem falados em língua portuguesa; serem produzidos em estúdios e laboratórios pertencentes a sociedades portuguesas, instalados em território português; serem representativos do espírito português, pelo seu tema, ambiente, linguagem e encenação, sem prejuízo dos grandes temas da cultura universal".
Não creio assim que, se efectivamente se der a interpretação superior que se deve dar à definição de filme português para ser protegido, seja possível haver qualquer dúvida acerca das intenções do diploma que vem à nossa ratificação.
O Sr. Mendes Correia: - V. Ex.ª dá-me licença? Referindo-me à classificação dos filmes portugueses digo