21 DE MARÇO DE 1947 945
E quem anda na rua - o homem comum - encontra-os dia a dia e pergunta, sem compreender, na metrópole e nas colónias, de que nos serve sermos um país colonial, de que nos serve sermos um império?
Voltemos ao ponto de partida: é muito difícil, enormemente difícil, conceber e realizar a coordenação económica de partes assim desorganizadas ou reduzidas como valores coordenáveis.
Mas, por mais difícil que seja, tem de fazer-se frente à situação: não para a bater de um só golpe com o elixir de uma orgânica publicada no Diário do Governo, mas também não improvisando perante as dificuldades ou procurando ganhar tempo com tentativas desarticuladas.
Temos um longo caminho a percorrer, mas é necessário que entremos no verdadeiro caminho e dele não nos desviemos, sejam quais forem os interesses criados na descoordenação, sejam quais forem as razões invocadas pelo receio das dificuldades.
E o verdadeiro caminho é só um: o do respeito, da obediência e do cumprimento dos princípios de solidariedade económica expressos no Acto Colonial - o caminho de providências e realizações em que a solidariedade deixa de ser uma palavra gritante para se transformar em programa de acção.
Não basta dizer e escrever solidariedade. E preciso fazer solidariedade.
O regime encontrou já, criada e instalada, como vício orgânico da economia portuguesa, esta situação de desacerto entre as economias da metrópole e das colónias e os erros que, do ponto de vista da solidariedade imperial, inferiorizam as partes constitutivas do Império. Agravavam-na então a desordem financeira, a instabilidade das moedas, os desmandos do crédito e as dificuldades naturais resultantes de uma ocupação militar e administrativa recentemente concluídas.
Talvez porque o mal vinha de longe e tinha constituído na sua vigência, nas almas e bestuntos portugueses, uma maneira de ser geral distanciada das realidades imperiais da Nação, isto é, talvez porque em Portugal há muito tempo se não pensava imperialmente, os esforços do regime, no seu impulso inicial de ordem e ressurgimento (e o tempo também), eliminaram ou corrigiram as agravantes da situação. Mas o espírito que adivinhava e sentia o próprio mal - a descoordenação - nas suas manifestações, desnudadas por entusiasmos de propaganda, não pôde, de um modo geral, exceder o enunciado de algumas fórmulas e ideias que o sentimento comum, demasiadamente metropolitano, e os interesses por ele criados não consentiram que vingassem. E assim, embora elevadas e melhoradas algumas condições prévias, a realidade continuou a ser a descoordenação. A economia imperial continuava a mover-se segundo um sistema de compartimentos estanques - por vezes, e à luz de certos factos, como se metrópole e cada uma das colónias fossem apenas um conjunto de países politicamente federados mas economicamente independentes. Era assim em economia liberal e assim continuava a ser em economia dirigida.
Esta descoordenação era clara entre as partes do conjunto e também na própria organização das partes constituintes. Ainda recentemente o nosso ilustre colega Dr. Pacheco de Amorim, no decurso da sua lição magistral sobre a política monetária, demonstrou como na metrópole se tornou evidente, em certa altura, a descoordenação entre a política de estabilização de câmbios do Ministério das Finanças e a política de estabilização de preços do Ministério da Economia - do que resultou o hibridismo de uma política de gabinete, com sérias consequências sobre os problemas que ambos pretendiam resolver. Nas colónias também qualquer observa o desentendimento, por exemplo, entre a acção dos serviços de Fazenda e os serviços técnicos, dos serviços de saúde e os serviços administrativos e até, dentro de alguns serviços, como os administrativos, a descoordenação entre a administração civil propriamente dita e os negócios indígenas.
Nesta descoordenação intrometiam-se facilmente, perturbando o jogo das possibilidades económicas e constituindo erros políticos deploráveis, certas violências exercidas por interesses económicos muito metropolitanos sobre as colónias, certamente de interesse para alguns, mas, evidentemente, contra o interesse geral.
Constituíram casos de pura descoordenação a questão das carnes, a política do arroz e dos cereais, as dificuldades por tanto tempo opostas à industrialização das colónias, a desorganização da marinha mercante imperial, etc., como os constituem ainda alguns absurdos vigorosamente sustentados por interesses privados contra o interesse geral e que ninguém entende, por mais que se expliquem.
Cito alguns exemplos demonstrativos:
Em 1937, perante o receio de colheitas escassas de arroz na metrópole, foi assegurada a Angola a colocação de 5:000 toneladas deste produto no mercado metropolitano. A colónia, cuja produção, apesar de enormes possibilidades, se encontrava limitadíssima por falta de mercados, reagiu prontamente ao incentivo, correspondeu com a sensibilidade e entusiasmo que a caracteriza e produziu as 5:000 toneladas necessárias à metrópole. Mas estava o arroz pronto a ser carregado quando um telegrama lacónico, de patrão que não dá satisfações, a informa de que a metrópole já não precisava das 5:000 toneladas e que a colónia não devia contar com a colocação de mais de 1:500. Omito pormenores. O facto exposto assim, na sua máxima simplicidade, explica e ilustra - até porque não é facto isolado nem excepcional - em que termos se concebia a política imperial . do arroz e, em parte, porque razão temos de recorrer hoje ao arroz brasileiro, sem embargo de se continuar a envenenar as populações das regiões orizícolas da metrópole com o impaludismo-verdadeira moeda com que se pagam os benefícios de uma política de arroz fechadamente metropolitana.
Outro exemplo de protecção absurda a interesses metropolitanos - ou, antes, a alguns interesses metropolitanos ilegítimos - contra a produção colonial e o consumidor da metrópole encontra-se na chamada questão das carnes. Só nos lembrávamos das carnes de Angola quando não havia outro recurso de abastecimento, o que equivale a dizer que se estabelecia como regra a incerteza para os produtores de Angola, incerteza agravada ainda por todas as deficiências de transporte. Pois bem: mesmo estes fornecimentos aventurosos sofriam aqui as piores diabruras. E tentou-se impunemente desacreditar as carnes de Angola, contra todos os esforços dos exportadores para as valorizarem, indo-se ate ao ponto de se sujeitar o gado a regime de emagrecimento antes de entrar no matadouro.
Indo para exemplos mais recentes, actuais, talvez V. Ex.ª não ignorem que enquanto na metrópole falta aflitivamente o sabão, racionado em quantidades microscópicas, há fábricas em Angola que não podem exceder uma produção de 30 por cento da sua capacidade ... por falta de colocação para os excedentes do consumo da colónia.
E não ignoram certamente que, por via da mesma descoordenação, mais responsável que todas as dificuldades da hora presente, temos colónias que nos poderiam abastecer de trigo - e que o importamos do estrangeiro; que nos poderiam abastecer de óleos comestíveis- e que a nossa população não dispõe do mínimo de gorduras alimentares necessárias à sua saúde (enquanto na metrópole o azeite se raciona a 3 decilitros