20 DE MARÇO DE 1948 383
O Sr. Águedo de Oliveira: -Sr. Presidente: valerá a pena? Num abrir e fechar de olhos, a Checoslováquia foi entregue a comissões liquidatárias da liberdade e fazenda alheias e políticos e administradores, embalados nos enganos e nos equívocos, despertaram em regime real de mobilização e trabalho forçado. A estas novas e colossais galés que nem os velhos pagãos conheceram se chama agora «repúblicas democráticas e populares, amantes progressistas da paz e opugnadoras de imperialistas...» De tal ordem os factos e as fórmulas andam em antagonismo mas proclamados como justapostos, que nem pelo suicídio parece poder ser salva a honra!
O programa Marshall discute-se actualmente em assembleia plena de Ministros de Negócios Estrangeiros. E foram de gentleman as palavras que o Sr. Dr. Caeiro da Mata proferiu na essência contra a espantosa muralha, lançada em torno da nação vizinha e com a qual se pretendem esconder - qual outra lejenda negra.- os seus rompantes cavalheirescos.
A Conferência de Havana deve ter dado os últimos retoques na Carta do comércio mundial, já aperfeiçoada em anteriores reuniões, o que interessa sobremaneira aos países que, como o nosso, estão sob a alçada do dilema- ou exportar ou morrer!
O pacto de Bruxelas é recebido com um frémito do entusiasmo nos meios políticos ocidentais.
O Presidente Truman, um grande homem, crente e severo, acaba de pronunciar com vigor: - basta! Amanhã poderá exclamar: - para trás!
Os que respeitam apenas a força, admiram a ficção directa e vão professando polo direito altivo menosprezo perguntarão se, neste carregado painel, ainda haverá lugar para trabalhos do género da longa exposição que vou hoje proferir.
Eu também o pergunto a mim próprio!
Grande parte, porem, das nossas virtudes actuais e até das vantagens presentes derivam de termos seguido a nossa vida entretidos apenas com as nossas tarefas, que, embora dependentes dos rumos universais, nunca escravizámos demasiadamente a factores e fórmulas estranhos.
Este debate tomou regularidade há alguns anos como tantas coisas novas de Portugal e permanece abrigado dos lances dramáticos destes tempos.
Sob a minha única responsabilidade, como Deputado e como homem de leis, apenas achei, por dever de lealdade na vida pública, que havia de aclarar alguns princípios e factos sobre a expressão e significado constitucional do julgamento político da Conta Geral do Estado.
Ao aguardar de todos a paciência própria de quem recebe explanação tão árida, desejo e hei-de pedir igualmente benevolência e respeito de V. Ex.ª e de todos para a ingratidão da minha tarefa e para o trabalho que antecedeu as minhas palavras.
O problema é intrincado, põe-se de diversa maneira, no terreno das ideias, das práticas consagradas e dos factos, mas talvez comporto solução a prazo não muito longo.
O Direito financeiro antecedeu o Direito constitucional.- Tenho necessidade de desfazer logo de entrada um relativo equívoco.
O que nós debatemos hoje é a Conta Geral do Estado tal como foi reorganizada nos termos do decreto-lei n.º 27:223, de 21 de Novembro de 1930. Uma conta soque como tal foi compendiada, comprovada, encerrada e impressa.
A nomenclatura Contas Gerais seria mais apropriada quando esta se repartia em conta de património e conta de rendimento, de ordenadores e de material e na sua estrutura entrava a da Junta do Crédito Público, hoje destacada e à parte.
O que está não está mal, mas a expressão de rigor é esta.
Historicamente, o Direito financeiro precedeu o direito constitucional; ou, melhor, este último começou por reduzir-se apenas às regras e práticas de Direito financeiro. Efectivamente os povos começaram a sua vida constitucional por consentir nos tributos e advogaram como direitos seus, opostos ao poder real, que a sua capacidade contributiva apenas podia ser autolimitada.
Assim as cortes e parlamentos nasceram da ideia de proteger os contribuintes - a Nação-contra as exacções fiscais dos reis e governantes.
O que com amplitude se chama a «fiscalização financeira» estabeleceu também destarte- o seu domínio, no Direito português e na teoria das Cortes Gerais.
A Nação e os seus representantes mostraram-se sempre bastante ciosos dos seus direitos e o imposto foi constantemente afirmado como uma concessão e nunca concebido ou efectivado sem protesto como direito realengo.
Referindo-se às Cortes, afirmava D. Afonso III: et plucuit eis concedere mihi e aprouve-lhes fazer-me esta concessão.. Reportava-se aos representantes às Cortes a propósito de impostos.
Nas Cortes de 1380, no tempo de D. Fernando I, foi afirmado que se lhes não imporiam tributos sem serem ouvidos e sem que, por sua decisão e conselho, se buscassem os meios suaves para a execução.
Nas Cortes dos Três Estados de Junho de 1498, no reinado do Venturoso, foi convocada a sua reunião, mas assinalando-se vincadamente que não era para requerer dos povos auxílios em dinheiro; indirectamente mostrava-se ser essa a sua grande função de direito público.
O Dr. Velasco de Gouveia, na Junta Aclamação, considerava tirânicos os Filipes «por afligirem o reino com excessivos tributos, sem serem consentidos em Cortes», e ainda pela crueldade manifestada pelos seus exactores. Eles não usaram dum direito e esse direito não pertencia à sua regalia.
E porque os tributos não chegassem para as despesas em perspectiva com a Guerra da Restauração e fosse indispensável obter mais da capacidade dos contribuintes, pregava o Padre António Vieira, o grande patriota, um dia antes de reunirem as Cortes:
Este é o fim de se repetirem Cortes em Portugal. Arbitraram-se nas passadas vários modos de tributos para remédio e conservação do reino; mas como estes tributos não foram efectivos, como estes remédios saíram ineficazes, importa agora remediar os remédios.
Podia abonar-me ainda com citações dos Drs. Mendes de Castro, Cabedo, canonista Navarro e outros jurisconsultos construtores do Estado Português. Mas não vale a pena.
A ideia de concessão havia de trazer a de fiscalização propriamente dita. A lógica e o tempo fizeram naturalmente o resto. Se os representantes da Nação autorizavam as contribuições públicas era natural que seguissem até ao fim o seu destino e quisessem saber da aplicação dada pelos governantes aos seus rendimentos.
As contas públicas que se prestavam aos reis, à Casa de Bragança, à Câmara de Lisboa acabaram por ser prestadas também aos representantes do País. Antes os procuradores já disputavam e reclamavam sobre gastos e contas. E assim o parlamento viu-se atribuído com competência exclusiva para autorizar tributos e despesas; acabou, como coroamento lógico, por verificar a aplicação dada aos créditos abertos.
Isso estamos fazendo.
É no Direito revolucionário francês e no nosso Direito liberal que a longa evolução secular chega a tais resul-