392 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 74
nição das ofensas corporais resulta do reconhecimento do direito à integridade pessoal.
Quando na Constituição se incluíram esses direitos não se inovou, não se proclamou um ideal, não fie seguiram os ditames da Razão abstracta, apenas se deu expressão legal a antiquíssimas realidades jurídicas profundamente enraizadas na consciência popular.
Tanto o direito à vida como o direito à integridade pessoal são verdadeiros direitos subjectivos, cujo respeito em cada indivíduo se impõe a todos os outros homens: são, pois, direitos absolutos, de eficácia universal, e que bem se podem dizer fundados nas leis eternas do direito natural.
Ora terá o direito ao trabalho a mesma índole? Que significa, de onde provém e que sentido possui este novo direito público subjectivo?
12. A ideia da existência de um direito ao trabalho é de origem ideológica puramente socialista.
O primeiro filósofo que a defendeu e que com o prestígio do seu nome e da sua obra a lançou no ideário socialista foi Fichte, nos seus escritos publicados nos últimos anos do século XVIII e nos primeiros do século XIX (Die Bestimmung des Gelehrten, 1794; Grundlage des Naturrechts, 1796; Rechtslehre, 1812; Staatslehre, 1813; etc.).
Fichte, que idealizou uma sociedade corporativa onde a propriedade dos bens de produção pertencesse às corporações (como há anos em Itália também foi defendido pela escola de Ugo Spirito), visionava para todos os homens, através da associação, o direito ao trabalho profissional (Eigentum des Arbeitszweiges), garantido pelo direito sobre os instrumentos da produção e pelo direito ao produto integral do trabalho.
Está assim definido o conceito tal como vai depois aparecer, expresso com maior ou menor clareza, nos socialistas franceses da primeira metade do século XIX, em Saint-Simon, em Luís Blanc (que apresenta como direitos fundamentais do homem o direito à vida, o direito ao trabalho e o direito a participar do progresso geral e que propõe como meio de os realizar as cooperativas, por ele designadas ateliers nationaux 1) e em Proudhon (Si le droit de vivre est égal, le droit de travailler est égal et le droit d'occuper encore égal 2).
Não admira, pois, que o direito ao trabalho fosse um dos grandes temas da Revolução de 1848: nas Constituintes depois reunidas a sua inserção no preâmbulo do projecto de Constituição (artigo 8.º) originou acalorados debates que ficaram célebres na literatura política 3, concluindo a discussão pela rejeição do texto por grande maioria (596 votos em 783 votantes).
Escrevendo anos depois, em 1858, no tomo 2:º de De la justice dans la Révolution et dans l'Église, Proudhon chamará ao direito ao trabalho un mot énigmatique, mais terrible 4.
Relembrando a discussão das Constituintes, evoca a perplexidade dos oradores: «Numa democracia onde estão os meios de decretar que devo fornecer trabalho a um particular cujos serviços me são inúteis e que f se não puder empregá-lo, hei-de pagar uma taxa ao Estado para este o empregar? Um tal princípio é um recurso ao despotismo, ao comunismo e a negação da República».
Como soluciona Proudhon o problema? Ouçamo-lo: «E eis como a Revolução lhes responde: na condição económica do antigo regime o direito ao trabalho implica contradição, é verdade; mas na nova ordem de coisas é apenas uma insensatez. Com o balanço dos serviços e dos valores, o equilíbrio das forças, a organização integral da aprendizagem, haverá sempre mais procura de trabalho do que o trabalho oferecido e a questão cai no absurdo» 1.
A resposta da Revolução, como se vê, não é muito convincente...
13. A expressão «direito ao trabalho» pode aparecer em uma de duas acepções principais: na primeira significa um poder reconhecido a todos os homens de exigirem que Lhes seja proporcionada uma ocupação remuneradora donde possam auferir os meios indispensáveis à subsistência; na segunda designará o poder dado ao trabalhador de reivindicar o produto integral do seu esforço de criação de riqueza (direito ao produto integral do trabalho).
No primeiro sentido saltam à vista as dificuldades da formulação de um tal direito subjectivo. Se se reconhece um poder é porque correlativamente se impõe um dever. Ora quem é que tem o dever de proporcionar o trabalho?
O Estado? Nesse caso os Poderes Públicos terão de inventar e manter constantemente campos de actividade para absorver todos os desempregados e não lhes será lícito invocar razões económicas ou financeiras para recusar o emprego de novos braços e para dispensar empregados e assalariados em tempos de crise. Teremos a forma providencialista do Estado na sua modalidade extrema, tendendo inevitavelmente para o regime colectivista.
Os proprietários particulares? É manifesto em todos os escritores socialistas o intuito de proclamar o direito ao trabalho como um princípio oposto, no regime capitalista, ao direito de propriedade. O proprietário seria o único cidadão dotado de verdadeira liberdade, inclusivamente pelo poder que lhe assiste de dar ou de recusar trabalho em virtude de ser o detentor dos instrumentos de produção. Mas o proletariado, que dispõe apenas dos seus braços para assegurar a subsistência, tem de viver dos bens que existem na sociedade, embora estejam individualmente apropriados pelos capitalistas. O proletariado não possui o direito de propriedade: mas tem de se lhe reconhecer um direito à propriedade, que só pode revestir a forma de direito ao trabalho.
Assim, os proprietários teriam a obrigação de repartir a fruição dos seus bens com os proletários, facultando-lhes trabalho mesmo quando desnecessário.
Esta concepção é admissível, dentro dos limites razoáveis e justos, no plano da moral. Foi por voluntária decisão que os proprietários rurais do Alentejo começaram há alguns anos a receber nas suas herdades os desempregados da região, ocupando-os em trabalhos supérfluos apenas para os assistir 2.
Mas onde conduzirá a sua consagração como norma jurídica?
Imposta pelos órgãos do Estado a proprietários rurais e a empresários industriais e comerciais, fácil é de ver o que seria feito da autoridade patronal e da disciplina da empresa, do custo da produção e da economia dos produtos. Onerada com encargos desproporcionados
1 Organisation du travail, 1839.
2 Que'est-ce que la propriété?, 1.º vol., p. 49.
3 Pronunciaram discursos, entre outros, Lamartine, Thiers e Tocqueville, que podem ver-se reunidos no livro de Gamier, Le droit au travail, 1848, e largamente extractados em J. Benet, Le capitalisme liberal et le droit au travail, vol. II, pp. 230 e segs.
4 Obra e volume citados, p. 241.
1 Le capitalisme liberal et le droit au travaill vol. II, p. 244.
2 Confunde-se muitas vezes o ponto de vista moral com o estritamente jurídico. Assim, o livro atrás citado de Benet, defendendo o direito ao trabalho do ponto de vista cristão, não consegue estruturá-lo juridicamente, ficando-se em simples afirmações de princípios de pura ética.