948 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 103
Em primeiro lugar julgo que, em matéria de angariamento de mão-de-obra, não seriam aconselháveis disposições rígidas de carácter geral. De colónia para colónia (usemos enquanto é tempo esta designação), como de região para região dentro de cada colónia, é muito variado o estado de evolução das populações nativas. A doutrina conveniente para uns não é própria para outros. E é para as populações mais atrasadas que eu penso não ser acertado o que se estabelece nos artigos a que me refiro.
Concordo, evidentemente, com o n.º 1.º do artigo 19.º Proíbem-se todos os regimes pelos quais o Estado se obrigue a fornecer trabalhadores indígenas a quaisquer empresas particulares. Está certo. Mas isto não implica que não seja do próprio interesse do Estado criar condições que facilitem a obtenção de mão-de-obra às actividades particulares, que são as melhores fontes de riqueza e progresso das colónias onde se exercem.
Já não concordo com o n.º 2.º nem com os artigos 20.º e 21.º, nos quais se estabelece que são proibidos os regimes em que os indígenas sejam obrigados a prestar trabalho, a não ser em obras públicas de interesse geral da colectividade, em ocupações cujos resultados lhes pertençam, em execução de decisões judiciárias de carácter penal ou para cumprimento de execuções fiscais, e se prescreve que o trabalho dos indígenas assenta na liberdade individual, intervindo a autoridade pública somente para fiscalização.
Ora nós temos a obrigação primacial de civilizar os povos atrasados que residam nos territórios ultramarinos sob a nossa soberania. E, ia meu ver, deixamos de cumprir integralmente essa obrigação se nos limitarmos a fiscalizar o trabalho dos indígenas que a ele voluntariamente se apresentem.
Pode afirmar-se que nalgumas regiões uma grande parte continuará entregue à embriaguez e à luxúria.
Para não falar senão do que caiu no campo da minha observação directa, vejamos o que acontece em Moçambique, onde residi alguns anos, em contacto com as populações de Manica e Sofala.
Há, sem dúvida, nessa colónia numerosos indígenas que voluntariamente se apresentam ao trabalho. Além dos que vão para o Rand, muitos trabalhadores dos nossos portos, muitos moleques, cultivadores de chá, etc., são voluntários.
Esses vão trabalhar, ou à busca dum salário alto, ou porque os serviços escolhidos lhes agradam, ou ainda porque, tendo já vivido junto dos brancos, criaram necessidades e tomaram o gosto a certas comodidades de que participaram e sentem desejo de voltar a usufruir. Mas da maioria dos que vivem a vida primitiva do mato só uma pequena fracção se decidirá, cada ano, a deixar-se convencer pela habilidade dos recrutadores, que, ao serviço de particulares, os procurem para contrato de trabalho.
Muita água há-de passar ainda debaixo das pontes antes que a maior parte deles se afaste voluntariamente da vida que, acima de todas, lhes agrada, que é deixar às mulheres o encargo dos trabalhos agrícolas para prover à alimentação, enquanto eles, os homens, pasmam o tempo entregues à devassidão e à beberragem das mais variadas bebidas fermentadas, preparadas por eles em improvisados alambiques e com as quais se embriagam e se envenenam, caminhando para um progressivo embrutecimento.
Há quem pense que, punindo-os no ano seguinte com trabalho obrigatório em tarefas de utilidade pública, cumprimos o nosso dever de nação civilizadora.
Além da incoerência que há em punir onde não há falta, penso que o nosso dever não fica cumprido se mão conduzirmos obrigatoriamente a uma vida de trabalho remunerado, fiscalizado e protegido esses indígenas atrasados, que teimam em se manter numa permanente ociosidade.
Os brancos também obrigam os seus filhos, por todos os meios, a trabalhar na escola ou na oficina, quando os conselhos não bastaram para o conseguir. O que se pretende, num caso e no outro, é criar homens independentes, dignos e úteis à colectividade. Há quem não concorde em considerar os pretos crianças grandes. Eu também não concordo, quanto aos indígenas já evoluídos, em sucessivos graus de aperfeiçoamento. Mas para os mais atrasados a equiparação é inteiramente justa.
Ora só as autoridades administrativas podem exercer com equidade e justiça essa acção, que aponto como necessária, junto dos indígenas.
Vejamos como julgo que o problema devia ser posto.
Os administradores de circunscrição, secretários e chefes de posto são os funcionários que estão em contacto directo com as populações das áreas que administram. Na posse dos recenseamentos, anualmente actualizados, conhecem todos os habitantes da circunscrição, sabem onde estão os homens válidos, as suas idades, estado de saúde, composição do agregado familiar e ainda as datas e locais em que já prestaram trabalho.
Se o administrador compreende e executa bem a sua função, torna-se o chefe respeitado e temido por todos os indígenas da sua área e, ao mesmo tempo, o protector a quem eles recorrem confiadamente, na doença, na fome ou para a resolução dos seus problemas domésticos, casamentos, questões entre casais ou com parentes e vizinhos, etc.
Auxiliado pelo secretário e chefes de posto e ainda pelos cipais e pelas autoridades indígenas, ele está permanentemente a par do movimento populacional da sua circunscrição, da qual ninguém sai e na qual ninguém vem de novo residir sem que ele tenha disso conhecimento e registo. Dispondo destes elementos, ninguém como ele pode intervir na distribuição de mão-de-obra. Numa organização perfeita todas as actividades oficiais ou particulares a quem faltasse mão-de-obra deveriam requisitá-la às autoridades administrativas.
A atitude do administrador perante o indígena válido, sem trabalho há mais de seis meses, deveria, no meu modo de ver, ser expressa, mais ou menos, nos seguintes termos: «Tu tens de te resolver a trabalhar, porque o trabalho é que há-de fazer de a um homem útil, capaz de se julgar irmão do branco.
Se queres ser um homem independente, trabalha por conta própria. Queres ser agricultor? Podes contar comigo para te ajudar. Dar-te-ei boas sementes, que restituirás na colheita. Eu ou alguém de competência especial te ensinará a melhor maneira de cultivar e colher. Fixarei os locais dos mercados de modo a que possas lá ir facilmente levar os produtos das tuas culturas. E fiscalizarei esses mercados para ter a certeza de que ninguém te engana no peso ou na contagem, nem no dinheiro que tenha de te pagar. Mas não suponhas que me iludes. Hás-de cultivar uma área com a extensão suficiente para que não possa ser amanhada só pela tua mulher e seja indispensável que tu próprio trabalhes; e que chegue para produzir não só mantimentos para a e para a tua família, mas ainda para obteres os géneros que hás-de vender, com cujo produto podes melhorar a tua vida e ainda, a pouco e pouco, comprar algumas alfaias agrícolas ou gado, que melhorem, nos anos seguintes, as condições do teu trabalho.
Se seguires por este caminho ninguém mais te falará em trabalhar por conta de patrões. Não queres? Nem aprendeste nenhum ofício? Então tens de trabalhar por conta de outrem. Nesse caso, aqui tens. Além das requisições dos serviços do Governo, estão aqui pedidos de mão-de-obra dos patrões A, B e C. Escolhe qualquer