946 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 103
interessar directamente pela investigação científica sobre essas populações, tendo manifestado opiniões que me dão o direito de esperar que na discussão em curso me considerem insuspeito de simpatia por certas ideologias de exportação preconizadas, tantas vezes tendenciosamente, por alguns meios estrangeiros, como também dum romantismo já sádico, à Rousseau ou à Chateaubriand, num total desligamento de realidades imperiosas e insofismáveis.
O artigo 15.º, como outros que se lhe seguem, consigna doutrina que essencialmente só difere da do Acto Colonial nestas palavras, coerentes aliás com a tradicional tendência assimiladora da política colonial de Portugal: «como regime de transição».
Isto é, as medidas ou providências especiais de protecção ou defesa dos indígenas constituiriam um regime transitório para o da cidadania estabelecida pela Constituição e pelo Código Civil.
Ninguém tem aplaudido mais sinceramente do que eu o regime instituído pelo Acto Colonial, verificado quanto ele é concorde com a realidade étnica nalgumas regiões do nosso ultramar.
Já em 1916, numa memória sobre alguns povos da nossa África, achava inviável para estes o Código Civil ou o Código Administrativo da metrópole.
Publicado o Acto Colonial em 1935, regozijei-me mais do que uma vez publicamente pela doutrina simultaneamente realista e humanitária nele consignada e ainda recentemente, há dois anos, numa conferência na Universidade Colonial de Antuérpia, tive o prazer de, expondo «As linhas gerais da política indígena portuguesa» num colóquio internacional (em que participavam também, além dos belgas e dos portugueses, ingleses, franceses e holandeses), proclamar quanto Portugal se honrava duma política tradicional, inspirada simultaneamente em princípios de fraternidade e no conhecimento das realidades.
Mas o Governo verificou, entretanto (julgo que toda a gente verificou), que no momento de uma revisão constitucional havia oportunidade para esclarecer a posição de Portugal perante esse colonialismo tão atacado hoje no Mundo por antigas colónias, que, no geral, são afinal estados fundados por antigos colonos ou descendentes destes e que não raro têm populações autóctones num regime de «indigenato», ou por países que, como a União Soviética, têm povos altamente civilizados sob um regime de opressão, que não se parece nem de longe com o tão condenado regime colonial.
Tomando esta atitude, não abdicamos nem da nossa magnífica tradição nem dos nossos princípios: apenas esclarecemos aqueles que de boa fé julgam de opressão ou de exploração a nossa política e a nossa acção no ultramar e damos satisfação plena às próprias populações ultramarinas, que, tão dignas da nossa fraterna compreensão, poderiam, iludidas na sua boa fé por uma propaganda tendenciosa, supor-se indevidamente a mesquinhadas pela nossa legislação.
Assim, como o próprio artigo 15.º consignaria, chamou-se de transição ao regime de indigenato, e em várias disposições, inclusive na própria integração do antigo Acto Colonial na Constituição, afirmou-se mais claramente do que antes o que era já pensamento tradicional da nossa política: a verdadeira união da metrópole e do ultramar num todo em que qualquer discriminação de raça ou categoria virá a desaparecer, em matéria de direitos e deveres, por uma acção que será suave, tolerante, gradual, respeitadora para todos os grupos étnicos de nacionalidade portuguesa.
Apoiados.
Substituíram-se palavras, esclareceram-se ideias, mas não se alteraram princípios fundamentais, não se inventaram ficções para se lançar poeira aos olhos, seja de quem for.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Precisamente em nome dessa continuidade tão honrosa para os portugueses e dessa sinceridade absoluta que é timbre heráldico de Portugal perante o Mundo é que vou expor o esquema em que fundo objecções graves à manutenção dos termos da proposta do artigo 15.º e do próprio capítulo III ou de grande parte dele na Constituição revista.
O problema que, a meu ver, deve ser posto é se, nas circunstâncias actuais do Mundo e da vida nacional, o nosso estatuto constitucional deve ou não conter, para grande parte da população do ultramar, uma condição genérica diferente da da cidadania, que é regra única para a metrópole e para algumas províncias ultramarinas. Isto é: estabelecida pelo artigo 7.º-B a possibilidade legal de um regime especial para certas populações menos evoluídas, deve a Constituição englobar todas as modalidades desse regime na expressão genérica de indigenato e chamar indígenas a todos os indivíduos abrangidos por tal regime? Na minha modesta opinião entendo que mão, e vou dizer porquê.
Dispensar-me-ei de expor os modos como os outros países europeus que possuem territórios ultramarinos resolveram ou têm procurado resolver ia questão. Não prescindirei, porém, da ponderação do ambiente internacional, seja legítimo, seja tendencioso, em torno do assunto, mas não abdicarei nem dos nossos princípios tradicionais na matéria nem da verificação objectiva de realidades da vida ultramarina, cujo olvido neste momento seria grave imprudência, mesmo deplorável leviandade.
O regime de indigenato fundamenta-se no atraso da vida tribal, de muitos meios costumeiros, em relação à vida dos civilizados; na inadaptação transitória ou permanente dos chamados indígenas às normas da administração local e geral, de trabalho e de economia daqueles.
À plena cidadania ele substitui uma condição que, garantindo a protecção e defesa das suas pessoas e bens e o respeito pelas suas tradições que não sejam contrárias da humanidade, da moral e da nossa soberania, torna os ditos indígenas colaboradores úteis, sem o perigo de criar neles, como escrevia um missionário inglês, perigosas «caricaturas de europeus», que têm como tipos os famosos ambaquistas de Angola, os muzungos de Moçambique, os forros de S. Tomé (parasitas das roças, que levam uma vida de artifício e mentira, aspirando, como conta Ernesto de Vasconcelos, a pessoas importantes «cídadon glande, flomoso e bem fecho»), enfim, esses exemplares, felizmente raros, que são maus elementos, desligados da sua tribo, mas por incorporar na vida civilizada, da qual apenas adoptam «os aspectos menos favoráveis.
Mas há mais, em favor do regime de indigenato: é que frequentemente as limitações postas pelas leis ou pela nossa sensibilidade à autoridade europeia são interpretadas pelas populações nativas como fraqueza daquela autoridade.
Enfim, não posso deixar de assinalar que o predomínio numérico dessas populações sobre a massa metropolitana seria susceptível de pôr em risco a continuidade rectilínea, ascensional, da missão tradicional, cristã, universalista, de Portugal no Mundo, missão ditada e assegurada, sobretudo, pelo património de sangue, história e cultura dos portugueses metropolitanos.
Como o saudoso marechal Carmona exclamou na sua memorável visita ao nosso ultramar, a metrópole é «onde Portugal começou».