378 DIÁRIO DAS SESSÕES N.° 131
No entanto, lia que fazer um novo e imenso esforço, desta vez dirigido, como já está sendo, ostensivamente à criação de novas e activas bases de fomento. É que, e não obstante tudo quanto se fez, o nosso grande problema, o maior, o mais candente, o problema-chave de todos os outros, continua por resolver e é aquele que Ezequiel de Campos sintetiza na obrigação primordial de dar «destino feliz a tanta gente do saldo fisiológico em cada ano».
Eu bem sei que se as diferentes classes trabalhadoras portuguesas se tomassem, de um momento para o outro, da noção do conforto, do asseio, da higiene e do bom gosto, mesmo com o que auferem, o aspecto geral das condições de vida melhoraria visivelmente. Teríamos mais aconchego na habitação, mais alinho no vestuário, mais verdade na exteriorização, mais casa e miemos taberna, mais lar e menos rua. Mas não podemos, infelizmente, atribuir só à falta desse espírito de compreensão dos temas superiores da vida as depressões morais e as quedam físicas que registamos a cada passo nas massas trabalhadoras.
Sempre que se chegue a uma superabundância de capital humano, o aviltamento do trabalho, o depauperamento da raça, os vícios do carácter são fenómenos de consequente fatalidade.
A mão-de-obra, onde não estiver regulamentada, passa a oferecer-se por qualquer preço, a alimentação é reduzida a proporções ínfimas e incompatíveis com a resistência humana, as virtudes sociais afrouxam e desaparecem.
A indignidade de certos meios de vida, o avanço da tuberculose, muitos frequentadores das cadeias saem desse estado de sobressaturação que se debate e enredam cada vez mais sobre si mesmo.
Perguntem a quem só vive do seu trabalho e não tem trabalho pura viver se possui alegria neste mundo, se não se sente, por vezes, tentado a ser desonesto, se não é capaz de se sujeitar a servir os exploradores da miséria alheia, se não pensa, no seu desespero, em entregar-se ao primeiro agitador de esquina.
Não há nada pior do que viver em permanente estado do necessidade.
Cito um caso:
Há já alguns anos, na ilha de S. Miguel, tive de julgar, no tribunal da Ribeira Grande, um homem de 60 anos incriminado por furto de 1 alqueire de milho.
O certificado do registo criminal apresentava-se absolutamente limpo.
Todas as testemunhas, quer de acusação quer de defesa, garantiam que o autor do furto, até ali, tinha sido um homem sério e honrado.
Mandei levantar o réu e interroguei-o directamente. As lágrimas corriam-lhe abundantemente pelas faces:
- Não arranjei trabalho, pedi esmola. Tenho uma filha viúva, que vive comigo, e mais seis crianças. Furtei para lhes matar a fome. Já não havia que comer em casa.
O homem chorava e tremia de vergonha por se ver no tribunal. Absolvio-o, e no fundo da minha consciência ficou a minar uma grande dor. É das raízes dessa dor que vem a ansiedade com que faço este meu aviso prévio.
Isto deu-se em S. Miguel, mas é o exemplo-tipo do estado de necessidade verificado em muita parte do mundo.
Há-de haver maneira de dominarmos a situação.
Foi Anselmo de Andrade, no seu Portugal Económico, quem escreveu isto:
O pânico é às vezes um poderoso meio de fomento.
É que não podemos esperar a repetição do milagre da multiplicação dos pães à mesa do Orçamento e por mão de pecadores, na pitoresca e acertada expressão daquele mesmo economista.
Por tudo e por nada apelamos para o Estado e dele esperamos- tudo. Mas não deve ser; o Tesouro Público não dispõe de meios capazes para a resolução integral dos grandes problemas de interesse colectivo. É preciso que os particulares se convençam de que devem ao País constante e activa manifestação do seu esforço, como elementos de uma sociedade que se desenvolve e cresce ao bafo do conceito cristão e eminentemente humano da solidariedade social.
Não podemos acreditar na possibilidade do paraíso na Terra, nem no nivelamento das classes pelo nivelamento dos meios de fortuna, de inteligência ou de aptidão física, mas acreditamos no triunfo da vontade sobre os desencontros da vida nos caminhos da sua ascensão.
Podemos, se quisermos, fazer muito para mitigar a dor, a miséria, a infelicidade dos que buscam, sem nenhuma sorte, os meios asseguradores da simples existência e do natural bem-estar compatível com a mais singela concepção de vida. Se cada qual, dos que estão em condições de fazer alguma coisa, olhar em roda e fizer repousar na sua consciência os quadros que os seus olhos virem, daí tirará forças para se lançar nas cruzadas sociais do nosso tempo, que vão mais longe do que exige o espírito de caridade, pois, transportando em si mesmas o sentimento de valer ao próximo, transcendem esse plano e destinam-se a servir e a integrarem-se na mais vasta e profunda tarefa do ressurgimento nacional.
E quando não for a compreensão da obra presente que leve a iniciativa particular a tomar parte decidida na obra total de mobilização de recursos da frente interna, então que o pânico, à maneira de Anselmo de Andrade, seja o despertante da acção.
Penso que os grandes proprietários rurais têm uma extraordinária missão a cumprir. Há que regressar à terra, há que repovoar de anseios e de carinhos as grandes superfícies entregues a vinhateiros e rendeiros, que não sentem amor pelo que não é seu e que não têm reservas materiais e educacionais para espalhar e difundir à sua volta amparos de ordem moral e social.
Penso que se deverá apelar para a devoção e para a seriedade dos técnicos, chamando-os a desempenhar um papel preponderante na assistência à lavoura.
Penso que os excitantes da produtividade do solo, regulados e ordenados no seu emprego pela prática agrícola e pela ciência agronómica, deverão ajudar, intensamente os prodígios da enxada.
Penso que as economias particulares mais abundantes poderão concorrer para uma criteriosa e suficiente atribuição do crédito destinado a proporcionar meios adequados ao exercício rural.
Penso ainda que o incitamento e a protecção às pequenas indústrias locais, com vista a ressuscitar e a alimentar o artesanato, será um processo seguro de contribuir para o equilíbrio doméstico e para a fixação dos lares, que esfriam e desanimam nos dias mortos para a agricultura.
Penso também que um tenaz e efectivo movimento cultural consciente e proficuamente desenvolvido sobre as massas rurais, procurando familiarizá-las com os hábitos e com as concepções de um estado de vida mais consentâneo com a dignidade humana, daria o fundo anímico de todo o quadro de ressurreição de valores que se deseja.
É preciso repor na sua posição de marcada nobreza o labor agrícola, renovar o orgulho de ser lavrador, o garbo de manejar a charrua, a altivez de usar a enxada, a glória de arrancar à terra o pão de cada dia.