10 DE MARÇO DE 1932 531
da frota e atulhou os porões de alimentos, desfaz em combate naval sangrento o garrote com que o castelhano asfixiava Lisboa, cabeça da resistência, e sacrifica a vida, bacinete ao alto, para melhor combater a bordo da sua nau Milheira, com mais de 2:000 marinheiros e homens de armas em aras da Pátria, para salvar no último minuto a independência, encorajando o Mestre e permitindo assim que Nuno Alvares, o maior génio militar de todos os tempos do glorioso Exército português, vá traçar nos planos de Aljubarrota a eternidade de Portugal como nação livre e faça nascer quase simultaneamente o espírito de missão.
Até que, em Junho de 1922, próximo do Restelo Velho, naquele mesmo lugar em que o rei Venturoso outorga, dá ordem, em esplendoroso cerimonial, ao Grama para chegar à índia, apontando o caminho, não só para a maior grandeza dia Pátria como voando mais alto, preparar o caminho piara a salvação da Europa, que começava a sentir a angústia de ser obrigada a entregar-se coimo vassala, ao vitorioso império do turco; tempos de ontem, tempos de hoje, Srs. Deputados, dignos de meditação nesta vigésima quinta hora da humanidade!
Até que, em Junho de 1922, próximo do Restelo Velho, uma caranguejola do ar, um papagaio, uma trapagem bem cosida da aeronáutica naval salta para o ar, tripulada por dois navegadoras marinheiros, e vai desafiar pelos ares o conhecido Atlântico, seguindo a derrota marítima de Cabral até às terras de Vera Cruz, através de métodos astronómicos de navegação científicos, exactos.
A Marinha, com a sua magreza de recursos, aguarda a expedição no ponto de chegada das escalas preconcebidas.
A étape Praia-Penedos de S. Paulo, um ponto na imensidade do mar, é a inverosímil escala de amaragem do papagaio que vai demonstrar de forma impressionante o rigor da navegação astronómica através dos ares.
O seu raio de acção, com os reservatórios atestados até a saturação, é praticamente igual a distância a percorrer, de modo que ligeiro desvio da derrota é o túmulo. Ainda tenho estampada a ansiedade que pairava sobre uma pátria inteira neste lance. A prova real dá certo; o papagaio amara junto dos Penedos, cai exausto nos braços da Marinha.
Será legítimo invocar exclusivamente métodos de navegação aérea de longo curso sem que o grito justiceiro brote espontaneamente, impondo os métodos vividos e depois melhorados em tão magnífico empreendimento?
Se porventura só tivermos olhos para a navegação electrónica, com as suas cartas hiperbólicas, o sistema Deca ou Loran, o girapiloto e a navegação radioguiada, e esquecermos o que é clássico e ainda actual e que a nós devemos, creio bem que, sem darmos por isso, nascerá dentro de nós um dialecto.
Depois daquela étape o triunfo está na mão. A derrota marítima de Cabral em 1500 às terras de Vera Cruz era seguida pelos ares quase quinhentos anos depois por navegadores portugueses.
Quem não se recorda da palavra simultaneamente murmurada, cantada, gritada por todas as bocas: o Chegaram!».
E quem não se recorda daquele momento vitorioso, mesmo naqueles tempos desfalecidos e incertos, em que nas cidades, nas aldeias, nos campos todo um povo se ergue como se se tivesse estabelecido pânico, desespero na alma, por incapacidade de materializar a expressão do sentir. Chegaram, era tudo!
E tudo isto, Sr. Presidente, não é retórica, ensaio de eloquência, nem mórbida paixão nem incompreensível subjectividade, nem o chamado «sentimentalismo».
É um foco, é um trecho da história da Nação e a ela pertence. Porquê? A História é uma ciência de factos que deve ter por carácter a verdade. Quem, sendo português, não se apresenta voluntariamente como testemunha?
A crítica e o crítico é, no momento, qualquer.
Mas ninguém dirá que ao invocar este feito eu não fui rigoroso, porque, efectivamente, em seu subsídio invoquei a geografia, a genealogia e a cronologia, porque falei de lugares, homens e tempos. Só não invoquei a numismática, porque se não cunhou moeda nem sei o preço da glória. Glória - transcendente palavra, Sr. Presidente e Srs. Deputados!
É que a glória, já o disse alguém, é mais do que muita gente julga, Não é o brasão para deslumbrar estranhos, mas o mais forte e inquebrantável da coesão nacional, muito mais valioso que a geografia ou a etnografia, pois os povos a quem a glória uniu e vivificou ficam sempre na história intactos, incontaminados, como o corpo dos santos que a terra não pulveriza, consome ou desfaz.
Saberiam lá porventura as nossas boas gentes das fraldas do Marão, da Cabreira ou da Fóia, dos mais isolados lugares desta abençoada metrópole e de além-
-mar, o que seria o zunido de um avião?
Foi como se a Providência tivesse acordado em clarão instantâneo as almas portuguesas, para lhes comunicar que quinhentos anos passados sobre os «Homens de 500» tinha enviado aos seus descendentes, pelos ares, perto do Céu, nova mensagem do nosso espírito de missão.
Rolará o tempo, Srs. Deputados, e quando os vindouros abrirem o grande livro da história universal a encontrarão que no limiar da abertura da Idade do Ar Portugal tinha sido chamado a inscrever através d os seus navegadores, a tomar o seu lugar na História repetindo a derrota de Cabral - e, até por curiosa coincidência de destinos, através de bem diferenciada personalidade, os espanhóis seguem-nos, em retardo, como na Era Grande, rumando pelo ar na derrota imortal de Colombo ao encontro da «Hispaniola» e depois às Filipinas, onde, por certo, toparam as pegadas do maior navegador de todos os tempos, que foi o português Fernão de Magalhães.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: neste derrancar, que nem é sonho nem vertigem, não me mantenho polarizado num sentido só, nem me movo em ciclo fechado.
Não. Vivem comigo, no momento, em identidade de espírito, pelo seu passado e presente, a esforçada e gloriosa aeronáutica militar; sou recolhidamente obediente à memória dos seus mártires, sem necessidade de consultar qualquer índex. Não, eu tenho fiel memória às suas magníficas expedições nos primeiros passos da Idade do Ar, dos seus sucessos, da galhardia das acções. Nem esqueço os Alcocks nem o Read, que escolheu o nosso estuário do Tejo como étape final do seu raid em força, nem o espantoso louco do ar, o mago do espaço, que foi Lindbergh.
Vim até aqui em obediência à história da aeronáutica naval, em harmonia com as leis do espírito. É que, Sr. Presidente e Srs. Deputados, eu pressinto e sinto necessidade de falar de nós quando na vida tudo corre tão vertiginosamente, passa, e simultaneamente estranhas invasões formigam, vasculham, por todos os lados, a procurar, por certo, como finalidade maior instalar-se no nosso consciente.
Podem sorrir os cépticos, sorrir ainda mais os assombrados por sonhos de hipotética grandeza ao travar vitoriosa batalha com tratados e textos, zombarem os discípulos de Antístenes, serem indiferentes os partidários do zero, a este discorrer ... Eu fico-me agarrado à rotina da tradição e do quê vale ou representa nas