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19 DE MARÇO DE 19S2 545

Lembra, e muito bem, o comandante Lopes Alves que a Marinha tem de ver com olhos de marinheiros. Não contesto, mas

Todo es segan el color
Del cristal con que se mira.

Também a artilharia tem de ver com olhos de artilheiros. Ambos sentimos, pois, os mesmos anseios e a mesma angústia. Creio, porém, que a solução do problema consiste essencialmente em fornecer aos novos aviadores uma instrução geral e uma preparação ecléctica. E que belo seria, nesta confraternização das armas e das almas, ver amanhã um aviador-marinheiro cooperando numa acção de contrabateria ou um artilheiro colaborando numa operação naval!
Além disso, tenho a convicção do que todos os meios privativos arrastam insensivelmente a um chauvinismo de classe.
Termina o seu vibrante discurso o comandante Quelhas Lima convidando os nossos colegas a votar de acordo com os superiores interesses nacionais. Muito bem!
Ora a Marinha portuguesa tem, com todo o direito, o orgulho das suas tradições e naturalmente por isso é ciosa das suas prerrogativas.
Foi naquele mesmo Restelo Velho - como diz o meu ilustre camarada -, naquele mesmo Restelo Velho donde saíram as naus do Grama, que se iniciou a última epopeia da raça, com a bela proeza de Gago Coutinho. De Gago Coutinho e Sacadura Cabral - convém não esquecer. Há simbioses heróicas que são indestrutíveis. Ambos foram iguais no dinamismo e na vontade indómita, iguais na bravura e na. abnegação, iguais na envergadura mental, na premeditação do feito, no estudo e na concepção matemática -Artur Sacadura, primeiro do seu curso, possuía uma brilhante e vasta cultura-, solidários em tudo, excepto na morte.
A Marinha portuguesa, dizia eu, com todas as suas tradições de glória, parece antever na proposta do Governo o sacrifício das suas prerrogativas. Não vejo porquê. E, mesmo que assim fosse, perante os superiores interesses nacionais todo o sacrifício se justificaria.
Eu sei de corporações, sei mesmo de indivíduos cuja razão encontra eco em todas as consciências, em todos os cantos da terra onde a moral cristã pontifica, e que são, todavia, imolados em holocausto aos superiores interesses nacionais.
Ah! Se todos os "grandes" do Estado Novo tivessem a mesma capacidade de sacrifício Salazar encontraria sempre quem o substituísse, pelo menos na isenção.
Mas a este respeito acho melhor ficarmos por aqui, à espera de melhor ocasião. Reatando, pois:
Há poucos- dias, numa reunião da Comissão de Defesa Nacional, alguém formulou este voto: "O que importa sobretudo é que não transpareça lá fora que existe um conflito entre o Exército e a Marinha". Estas palavras, proferidas por um marinheiro, comoveram profundamente o meu coração de soldado.
Vou responder-lhe, Sr. Comandante Lopes Alves, citando algumas passagens de um discurso, proferido há mais de seis anos, com que se estreou nesta Assembleia um camarada seu do Exército e que vem no Diário das Sessões de 6 de Dezembro de 1945:
Todas as reuniões desta natureza, sobretudo entre oficiais de terra e mar, têm ura alto significado patriótico e são de uma eloquência incontestável nos tempos que vão correndo. É natural portanto quê elas encontrem no seio da Assembleia Nacional a devida repercussão. Estas manifestações recíprocas de confiança e de solidariedade, bastante raras antes do 28 de Maio, têm-se generalizado depois disso, e ainda bem, para consolidação e prestígio da grande família militar. Dir-se-ia, meus senhores, que depois
de tantos equívocos que entre nós deixámos levianamente avultar, equívocos que os nossos antagonistas largamente aproveitaram e com que ainda hoje pretendem especular para nos dividir, nos encontramos finalmente reunidos pela mesma ideologia, caminhando juntos para o mesmo desígnio, de olhos fitos na mesmo aspiração. E quando mais se não tivesse conseguido, depois do 28 de Maio, além desta obra meritória de conjugar e congraçar todos os elementos úteis da força nacional, bastaria isso apenas para valorizar a actual situação.
De facto, a obra colossal, a obra patriótica do Chefe do Governo, como ele próprio reconhece e por mais de uma vez o tem declarado, só seria possível numa atmosfera de ordem, com o prestigio da autoridade intacto, condições essenciais que não teriam lugar sem a união perfeita de toda a força armada. E, quando se afirma que o Exército está unido, é necessário que se entenda este imperativo nacional como abrangendo todos aqueles que envergam, sobre corações de portugueses, o mesmo uniforme da galhardia e da honra.
Essa união indefectível somos nós os primeiros a desejá-la, nós, os soldados de terra, que admiramos com todo o entusiasmo os soldados do mar pela sua curiosa individualidade, pela sua bizarra psicologia, pela sua atitude na batalha e pela sua elegância na morte. E, com efeito, para nós, artilheiros, infantes, aviadores, engenheiros ou cavaleiros, em terra firme pode haver retiradas tácticas e honrosas, desde que o material abandonado previamente se inutilize; pode mesmo haver rendições sem ignominia, desde que todas as atenuantes plenamente se verifiquem.
Ao passo que para os nossos camaradas que andam no mar entregar o seu navio é fornecer ao inimigo uma poderosa fortaleza volante, que, em qualquer parte e em qualquer altura, poderá voltar-se contra nós. A batalha no mar, quando se é obrigado peias circunstâncias a aceitar um combate desigual, tem qualquer coisa de trágico e de implacável.
Voam despedaçados os discos de aço das torres blindadas, tombam com fragor as superstruturas, são cortadas pela metralha as transmissões entre o blockhouse e os órgãos de combate; distâncias, correcções, ordens de fogo, não chegam já aos apontadores desorientados.
Tão importa! Enquanto reste um canhão, enquanto houver um servente de pé, o navio bate-se, e quando as granadas faltarem despejam-se os torpedos.
Uma vontade febril, furiosa, indomável, sacode a marinhagem, e a energia dos homens comunica-se às coisas, infiltra-se no carvão, nos óleos j no fumo, no aço; as metralhadoras, as peças, as máquinas, tudo tem vida e alma, tudo vibra no mesmo esforço derradeiro, na mesma angústia desesperada. Entretanto o incêndio lavra já no tombadilho; por toda a parte as coisas ardem, os corpos tombam e as almas agonizam. Mas não importa, não importa ainda! Na carangueja, à popa, continua içada a bandeira e no tope do mastro grande, segundo a ordenança, ergue-se ainda a flâmula. O navio não se rende! Uma chuva de projécteis criva-o inexoravelmente, mas ele não responde, não pode já responder, e enquanto o inimigo, atónito, hesita diante deste adversário admirável, enquanto a artilharia emudece, entre o bramir fúnebre do mar, o comandante, então -porque esse não morreu todavia-, manda abrir as válvulas de fundo e, numa apoteose digna dum arcanjo, desce lentamente, suavemente, nessa trincheira gloriosa que as ondas abrem para os marinheiros.