4 DE ABRIL DE 1952 659
festar aqui a minha discordância e o meu desgosto pela atitude do Governo neste caso concreto.
Não terminarei, no entanto, estas considerações sem formular o voto e exprimir o desejo muito sincero de que não voltem a praticar-se por parte do Governo actos como aquele que determinou o presente aviso prévio, pois que o desprestigio que resulta de tais actos para o nosso sistema constitucional vem a reflectir-se, cedo ou tarde, no próprio prestígio da entidade que os tenha praticado.
JE é isso, fundamentalmente, o que todos nós desejamos que venha a evitar-se.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Galiano Tavares: - Sr. Presidente: não intervim no debate que nesta Câmara suscitou a proposta de lei sobre o notariado, mas segui-o com atenção e apercebi-me em dado momento de que se tratava, efectivamente, do interesse de certos povos. Votei, por isso, contra a proposta do Governo.
Não o fiz por mero espírito de oposição. Procedi livremente e apenas me determinei por mim próprio e pelo respeito que me merecem sempre, quando se me afiguram legítimas, as aspirações das populações e dos povos que vivem longe dos centros urbanos, por conhecer as incomodidades e perdas de tempo e despesas que representam as deslocações para quem carece de tratar da sua vida. Ainda hoje não estou arrependido de o ter feito.
Sei que os modernos parlamentos evolucionam num sentido mais de fiscalização administrativa do que legislativa e legiferante, missão que já Stuart Mill considerava de muito maior importância que a simples feitura de leis. A própria estrutura interna dos parlamentos se modificou com a criação de comissões indispensáveis ao estudo dos vários problemas, cada vez mais complexos e múltiplos, embora sempre mais ou menos impregnados do espírito político que não pode deixar de os caracterizar.
São estas comissões absolutamente indispensáveis, dada a' natureza técnica dos problemas que surgem e que a cada passo e constantemente se modificam num mundo em permanente renovação.
A Assembleia Nacional votou contra a proposta, mas não votou contra o Governo, e por isso mesmo nos surpreendeu que, quarenta e oito horas depois de publicada a lei aprovada, fossem revogados por decreto-lei os artigos sobre os quais se havia desenvolvido, com mais calor e entusiasmo, a discussão e que a Assembleia aprovara por maioria.
O aviso prévio do Sr. Deputado Sá Carneiro, com a autoridade que provém da sua própria posição de relator da comissão que estudou a proposta de lei, a adoptou e defendeu, traduz uma atitude de reabilitação que a Assembleia Nacional merece e o seu prestígio exigia.
Tenho esta Assembleia como colaboradora do Governo, como colaboradora útil e proveitosa, porque aqui tenho ouvido tratar, com seriedade e elevação, problemas de manifesto interesse público e nacional.
Não posso, por isso, compreender a pouca consideração que se lhe deu na atitude do Governo e no esquecimento dos seus deveres na colaboração com os demais órgãos de soberania e especialmente com esta Assembleia, colaboração que aliás é pressuposto necessário do seu próprio exercício.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Jacinto Ferreira: - Sr. Presidente: poderá parecer estranho que um Deputado adversário declarado das chamadas instituições parlamentares (apesar de Deputado) venha associar a sua voz a este debate, reclamando para o órgão representativo dessas instituições toda a consideração que lhe é devida.
ï! porque, embora discordando do mecanismo da sua designação, eu entendo que a Assembleia Nacional representa essencialmente o princípio do direito fundamental que aos povos assiste de serem consultados pelos seus governantes, às vezes de deliberarem sobre determinados assuntos e sempre, e em todos os casos, de fiscalizarem os actos daqueles. E tanto faz, para isto, que os governantes o sejam por direito próprio, como por apropriação do poder à qual o consentimento público por um período mais ou menos longo tivesse acabado por conferir foros de legitimidade, como ainda por designação legal efectuada em harmonia com os princípios das Constituições.
Durante muito tempo os demolidores dos mitos democráticos assestaram os seus ataques sobre o Parlamento, e muito bem, porque ele talvez nunca tenha merecido a justiça de um louvor e raramente terá sido digno de ouvir uma palavra de gratidão.
Mas a má compreensão desses ataques levou a confundir o superficial com o profundo e a tornar propício o clima para o desabrochar de uma floração de ditaduras, em relação às quais a história não está a ser mais benévola do que o foi para as instituições genuinamente democráticas.
Supôs-se, em geral, que a condenação dos métodos de designar os representantes da Nação abrangia o princípio da legitimidade dessa representação, e por tal forma isto se radicou que se torna hoje necessário um intenso trabalho de recuperação para que se possa conseguir uma inteira reeducação política.
Reeducação, sim, porque educar, politicamente, se não é criar bandos de agitadores e de arruaceiros embriagados no gozo dos direitos que lhes disseram serem seus, tão-pouco é criar populações humildes e submissas à voz ou ao gesto do primeiro polícia à paisana que se lhes dirija.
E antes incutir em cada um a noção justa dos seus deveres, cujo cumprimento integral e espontâneo deva ser religiosamente guardado, e, paralelamente, gravar na consciência de cada cidadão o conhecimento perfeito dos seus direitos, para que em caso algum se preste a entregar a sua primogenitura moral em troca do ilusório prato de lentilhas da ordem e do progresso indefinido que em qualquer momento lhe venha a ser oferecido pelos mais espertos ou pelos mais ambiciosos.
E por isso que, discordando profundamente do sufrágio universal presidindo à designação dos representantes da Nação para constituírem os chamados corpos legislativos, me não presto a calar a minha voz quando vejo essa representação -bem feita ou mal feita, agora não interessa diminuída nas suas atribuições pelos outros órgãos da soberania ou pelos representantes e delegados destes.
E certo que esta Assembleia não terá sido sempre inteiramente feliz na realização do seu desejo de atrair sobre si o prestígio devido. Censuramos nós, os desta geração, as dos regimes anteriores pelo seu excesso de calor, pelo seu excesso de zelo dos interesses partidários, pelos seus excessos de comportamento. Mas não será absurdo admitir-se a hipótese de as gerações futuras nos dirigirem não menos amargas censuras por deficiências de entusiasmo na discussão, por excesso de pacatez, senão mesmo, em muitos casos, por uma pronunciada apatia.