4 DE ABRIL DE 1952 655
tar-se apenas de uma questão de interpretação do artigo 97.º, no sentido de a restrição nele contida abranger, ou não, o aumento indirecto de despesas ou a diminuição indirecta de receitas, poderá inferir-se a posição tomada pela Assembleia Nacional nesta matéria e o cuidado posto no seu esclarecimento, ainda que a divergência de interpretação seja de pequeno alcance.
O debute da Assembleia Nacional de Julho de 1945 e a subsequente votação interessam agora apenas na medida em que mostram a plena luz qual a doutrina constitucional que a praxe e adesão contínua da Assembleia solidificou e em que dão conhecimento dos pontos restritos sobre os quais se levantaram esporadicamente vozes discordantes. Em matéria de aumento de despesas, o único ponto que foi objecto de opinião divergente refere-se a projectos de lei ou propostas de alteração que determinem indirectamente aumento de despesa. Em tudo o mais verificou-se na Assembleia a mais firme e completa unanimidade.
Ora o agravamento da despesa com a reorganização dos registos e notariado constitui um aumento de despesa do Estado. Não se trata indubitavelmente de um aumento indirecto de despesas. Despesa pública é todo o emprego por parte do Estado de quantias em dinheiro para satisfação de necessidades colectivas. E não é duvidoso que o custeio de serviços públicos constitui despesa pública.
Tão-pouco tem que ver, ao que parece, com a definição de despesa pública, a sua previsão no Orçamento Geral do Estado ou em orçamento próprio. A personalização financeira de um serviço, com a consequente consignação de receitas, constitui uma excepção à universalidade do Orçamento Geral do Estado, em obediência a conveniências da Administração ou de técnica financeira, mas não suprime a natureza das receitas ou despesas como receitas e despesas do Estado.
A Assembleia Nacional, porém, votou o aumento dos encargos da reorganização. Logicamente, este voto poderia explicar-se ou por olvido da disposição constitucional do artigo 97.º e da praxe até agora seguida e tão firmemente exposta na própria Assembleia, ou pressupondo nova e diversa interpretação do referido artigo 97.º
III) Se fosse o caso de presumir que a Assembleia Nacional assentara em nova e diferente interpretação do artigo 97.º da Constituição e o Governo tomasse posição oposta, verificar-se-ia uma divergência de interpretação da Constituição pelos órgãos da soberania e, em consequência, inevitáveis embaraços na coordenação das respectivas funções. Para- tais casos só haveria recurso à intervenção do Chefe do Estado. Na verdade, «a soberania reside em a Nação e tem por órgãos o Chefe do Estado, a Assembleia Nacional, o Governo e os tribunais» (artigo 71.º da Constituição), mas é ao Chefe do Estado que, em casos extremos, cabe usar de poderes, por sua natureza excepcionais, de maneira a garantir aquela coordenação: recusar a promulgação das leis, demitir o Governo ou dissolver a Assembleia.
Mas não me era lícito admitir que tal hipótese, puramente lógica, resistisse a- um breve exame dos factos. E na verdade a Assembleia Nacional, que ainda em 1945 e com impressionante unanimidade fixara uma interpretação do artigo 97.º da Constituição, inclinando-se firmemente, nos pontos que se julgara esclarecer, para uma doutrina restritiva, mesmo quando contrária à proposta governamental, não desprezaria os seus próprios ensinamentos sem que tivesse discutido de novo amplamente o problema constitucional, tanto mais que a Assembleia tinha então poderes constituintes.
Seria por isso inconveniente seguir o caminho de aconselhar a V. Ex.ª, no exercício das prerrogativas de Chefe do Estado em que se encontrava investido, a recusa de promulgação da lei. Haveria para tanto que justificar essa recusa com o fundamento da violação do artigo 97.º da Constituição, quando é certo que fora sempre a Assembleia a mais eficiente defensora da limitação constitucional constante daquele preceito, e a referida votação só poderia, dadas as circunstâncias que aponto, atribuir-se a simples lapso. Acresce que a recusa de promulgação abrangeria a Lei n.º 2:049 no seu conjunto, levantando graves inconvenientes para a Administração e suscitando porventura reacções de ordem política. Pareceu assim preferível revogar as disposições da Lei n.º 2:049 que contrariavam o equilíbrio financeiro da proposta governamental; mantinha-se, desta sorte, a doutrina constitucional, consoante a interpretara a própria Assembleia (à qual cumpre especialmente vigiar pelo cumprimento da Constituição, nos termos do artigo 91.º, n.º 2.º). sem proclamar uma divergência de interpretação, certamente inexistente, entre a Assembleia Nacional e o Governo.
IV) Como nota final resta fazer referencia às observações do Sr. Deputado Sá Carneiro sobre a extinção dos cartórios em localidades fora das sedes de concelho.
A proposta do Governo incluía uma disposição assim redigida: «Os cartórios actualmente existentes que excedam o número previsto no referido mapa serão extintos à medida que vagarem» (§ único do artigo 7.º). A Assembleia Nacional votou a manutenção dos cartórios notariais existentes fora das sedes de concelho em Dezembro de 1949. A Comissão de Legislação e Redacção da Assembleia, ao redigir a lei em face do voto para manutenção daqueles cartórios, cindiu a matéria constante do corpo e parágrafo do artigo 7.º da proposta do Governo, acrescentando-lhe um outro parágrafo relativo aos cartórios mantidos ou restaurados, de sorte que o princípio da extinção de cartórios subsequente à vacatura de lugares poderia julgar-se não abranger, após a publicação do Decreto-Lei n.º 38:385, os lugares de cartórios em freguesias, desde que se aceitasse uma argumentação a contrario sensu.
A interpretação a contrario sensu, porém, é sempre perigosa. A própria possibilidade dessa interpretação só me foi sugerida pelo teor do aviso prévio. A extinção de todos os lugares suprimidos pela reorganização dos registos e notariado, incluindo os cartórios em sede de freguesia, só se verifica à medida que os mesmos lugares vagarem. E neste sentido foi interpretado o Decreto-Lei n.º 38:385. Ignoro quais as informações colhidas sobre extinção de cartórios pelo Sr. Deputado Sá Carneiro; mas são, sem dúvida, inexactas/
Em 8 de Agosto de 1951 existiam os seguintes cartórios com sede em freguesias: Alcanede, Alpedrinha, Arazede, Fermil, Lixa, Louriçal, Negrelos, Paião, Rio Tinto, S. Lourenço do Bairro e Serzedo (Boletim Oficial do Ministério da Justiça n.º 23, ano XI). De todos estes cartórios foram sómente extintos, após a publicação do Decreto-Lei n.º 38:385, o cartório notarial de Arazede, pela colocação por concurso do respectivo notário na secretaria notarial da Guarda (despacho publicado no Diário do Governo de 6 de Outubro de 1951) e o cartório notarial de Negrelos, por o respectivo notário ter atingido em 27 de Agosto de 1951 o limite de idade.
Apresento a- V. Ex.ª, com respeitosos cumprimentos, o testemunho da minha mais elevada consideração.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 1952. - O Ministro da Justiça, Manuel Gonçalves Cavaleiro de Ferreira.
O Sr. José Meneres: - Sr. Presidente: requeiro a generalização do debate.
O Sr. Presidente: - Declaro generalizado o debate.