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4 DE ABRIL DE 1952 657

E, já que estamos no campo das hipóteses, eu agora não sou Deputado: sou um julgador, um inquiridor, um bonzo.
Mas desta vez não julgo de direito puro, nem mesmo impuro; não me embrenho no labirinto da técnica jurídica, onde me espera o dragão implacável: trago nas minhas mãos o fio de Ariadne; estou salvo porque julgo só de facto.
Nesta altura sou portanto intangível como os bonzos - soberba hipótese! Oh, como é cómoda, divinamente cómoda, paradisíaca, esta situação do intangibilidade!
Mas, reatando, dizia eu - eu, julgador - que o Governo alterou como quis, som prévia explicação, um decreto que antecipadamente «submetera» à discussão da Assembleia. Este verbo «submeter» envolvo um reconhecimento de soberania, aliás desnecessário, visto que a Constituição o proclama.

O Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª dá-me licença?
Há aí um pequeno equívoco. Não foi o Governo que submeteu à apreciação da Assembleia um decreto. Foi a Assembleia que, no uso de uma atribuição constitucional, requereu que um decreto do Governo fosse submetido à ratificação.

O Orador: - Porque é que eu citei este facto? Foi para me agarrar ao verbo «submeter». Não se deu isto com esse decreto, mas outros tem sido submetidos à ratificação; para o caso é o mesmo.

O Sr. Manuel Lourinho: - Não sucedeu, mas veio para ratificação da Assembleia.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Como V. Ex.ª disse que ia julgar «do facto», eu quis pôr os factos.

O Orador: - Eu não estou a pôr os factos com má fé. O que eu quero, repito, é pegar no verbo «submeter».

O Sr. Mário de Figueiredo: - Eu não tenho dúvida alguma acerca da boa fé de V. Ex.ª, mas foi exactamente por V. Ex.ª ter pegado, como disse, no verbo «submeter» que eu acudi a tempo.

O Sr. Presidente: - Eu desejo esclarecer V. Ex.ª do seguinte: segundo a Constituição, os decretos-leis publicados durante o período de funcionamento da Assembleia Nacional podem ser submetidos à ratificação da mesma, se esta o requerer.
Portanto, trata-se de uma faculdade da Assembleia, e não de uma obrigação do Governo.

Q Orador: - Muito obrigado a V. Ex.ª

O Sr. Carlos Moreira: - Não há dúvida do que desde que o decreto cá veio, ficou submetido.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Um decreto não fica submetido à apreciação, mas sim à consideração da Assembleia, para que, se esta o requerer, seja então submetido à apreciação da Assembleia.
O Orador:-Convém lembrar que eu, julgador, admiti em princípio a hipótese do agravo. Analisemos, pois, as consequências.
Dir-se-á, no entanto, que, uma vez encerrado o Parlamento, o Governo procedeu apoiado num direito que a mesma Constituição lhe confere ou, melhor neste caso, lhe faculta. Tanto pior.
Quem agrava publicamente um amigo, um colaborador, um confrade, à sombra de um direito, por mais legal que seja, em pouco apreço tem a sua confiança e a sua estima.
E certo que não houve da parto do Governo arbitrariedade ou prepotência; mas neste caso antes houvesse, para se poder protestar com razão ou perdoar com galhardia.
Perdoar? Porque não? «Se receberes agravo de um mau», dizia Santo Agostinho, «perdoa-lhe, para que não haja dois maus». E ainda o inquiridor quem fala.
Tudo se afigura afinal como se houvesse da parte do Governo o uso imoderado de um direito, que deixou mal colocados os representantes da Nação perante os povos cujos interesses serviam.
E, assim, depois das manifestações de regozijo efectuadas nas localidades favorecidas pela votação da Assembleia; depois dos agradecimentos que lhe foram dirigidos pulas virias comissões locais; depois do fogo do artifício, dos arraiais e das bandas do música, aparece de súbito, ante os olhos atónitos das massas desiludidas e desorientadas, um novo decreto revogando todos os benefícios que uma assembleia pseudo soberania lhes tinha outorgado.
E isto com a agravante de se terem suprimido nesse diploma definitivo - como no aviso prévio se alega - as próprias dilações que o Governo anteriormente admitira.
Dir-se-ia, portanto, que foi mal interpretada a discordância dos Deputados, discordância que, aliás, manifestaram no propósito apenas de defender interesses que consideravam legítimos.
Desta forma os únicos prejudicados foram precisamente os suplicantes, enquanto a Assembleia Nacional, atingida, ou suposta atingida, nas suas prerrogativas morais, via o seu crédito e o seu prestígio abalados. Entristece-nos realmente que não se tenha, considerado a tempo que essa medida infeliz poderia representar para a Assembleia Nacional um gesto simbólico de interdição.
E agora, voltando a ser Deputado, pergunto a mim mesmo: seria desejo deliberado do Governo agravar a Assembleia?
Foi esse, evidentemente, o resultado, com toda a sua inevitável repercussão, mas não foi esse decerto, o propósito governamental. Supor o contrário seria admitir um suicídio político. E tanto é essa a minha convicção que desde já me recuso a assinar ou a votar qualquer moção de censura ao Governo.
Há dois órgãos de soberania - dois sobretudo - aos quais interessa, nesta causa comum, a colaboração, a harmonia, a convergência de esforços e o respeito mútuo.
Refiro-me ao Executivo e ao Legislativo. A nenhum deles convém o desprestígio do outro e, apesar da atitude de crítica que este pode assumir em relação àquele, não temos o direito moral de responder a um agravo com outro agravo.
«Não ofende quem quer» - é um lugar-comum tão falso como quase todos os lugares-comuns, porque a verdade é esta: só ofende quem quer, e o Governo não quis ofender-nos. Procurar desacreditar-nos seria, além de tudo, uma injustiça e uma ingratidão da sua parte.
V. Ex.ª é testemunha, Sr. Presidente, da nossa correcção dentro desta Casa; V. Ex.ª tem verificado a moderação e a delicadeza, a preocupação de justiça e de louvor com que criticamos os actos do Governo ou lhe pedimos providências1, salvaguardando sempre todas as susceptibilidades. E não é só pelo prestígio de V. Ex.ª, por todos nós reconhecido, não é só pela sua capacidade de persuasão, por todos nós acatada, que obedecemos às suas directrizes e aos seus conselhos; é também pela nossa clara noção de civismo e pela nossa lealdade a Salazar.
É ele, é a sua isenção, o seu sacrifício que nos faz calar; e, se alguma vez falamos com mais desassombro, é precisamente para lhe darmos força.