20 DE MARÇO DE 1953 939
verem de ser patenteadas aos parentes, aos vizinhos, aos menores, se as pessoas e as coisas se atropelarem e sobre elas se acumular a, sujidade, que o sol não ilumina e descobre, parece inevitável, repito, que a má casa contribua para a perda do pudor e dos sentimentos mais nobres.
A promiscuidade nas habitações tem concorrido para não poucos casos de incesto, preparado muita desgraçada para a prostituição; e a falta de conforto e de ordem fatalmente desconsolará o trabalhador no regresso ao seu lar, e abatê-lo-á, somando-lhe o quebranto da alma ao quebranto do corpo.
Há perto de cem anos o velho revolucionário Blanqui (que o relator do nosso primeiro decreto sobre moradias económicas se não dedignou de citar) escrevia isto:
Tenho estudado com religiosa solicitude a vida íntima das famílias operárias, e por isso não duvido afirmar que a insalubridade das casas é o ponto de partida de todas as anisarias, de todos os vícios e de todas as calamidades do seu estado social.
E, há meses apenas, no último documento que pude consultar das condições sociais no seu país, é ainda a miséria das habitações que alinha entre os mais permanentes motivos de descontentamento dos trabalhadores observados nos subúrbios de Paris.
E entre nós, logo poucos anos volvidos sobre a inauguração dos primeiros agrupamentos de casas económicas, foi o próprio Diário do Governo que deu fé de uma "vida nova que aquelas pequenas casas, alegres e higiénicas, quase instantaneamente fazem nascer", reconhecendo que "parece estar ali um elemento primário de profunda e benéfica transformação social ...".
Esse renovado gosto pelo lar, esse contentamento de o sentir vedado e agasalhado, e repassado de sol, e franco ao ar, esse carinhoso alindar dele ao jeito das fracas posses eu próprio o tenho repetidamente verificado em condições bem diferentes de sítios e de ambiente, mas idênticas na essência dos factos e das pessoas: posso abonar a sua intensa sinceridade e confessar que na sua contemplação ganhei porventura o mais forte neste empenho por que alastre.
Não falta quem deponha igualmente. Um só exemplo, recente. De certo bairro, concluído no Porto há apenas dois anos, fala assim quem bem pode entender estas coisas:
Tenho amigos no Bairro da Corujeira e vou por ali várias vezes ... Casinhas brancas. Ruas empedradas. As donas de casa ocupadas a estender roupa ao sol nos seus formosos jardins. Tudo ali cheira a sabão ...Crianças limpas folgam à porta de suas casas ... De onde veio aquela gente toda?
Nada: moravam nos Barredos. Então quê? Nada: mudaram de ambiente.
Por força de razões e saber de experiência, podemos, pois, convencer-nos de que é deletério o efeito moral da casa acanhada e insalubre; revigorador o da morada bastante e asseada.
Mas, se assim é quanto à influência no adulto que abriga, que dizer dos efeitos sobre a criança que nela cresce? Raro se atende a este aspecto da questão, e, contudo, que poderoso elemento de formação não é a casa em si e só por si! Ela pode condicionar os próprios fundamentos das virtudes morais e cívicas, e destarte, antepondo-se à escola no tempo, sobreleva-a até de certo modo.
Em verdade, há-de ser mais difícil incutir o amor dia Pátria em quem conheça por primeira expressão dela um pardieiro esburacado; não se convencerá depressa da dignidade do trabalho o moço que nem lhe veja o prémio dum lar sossegado. Com o pudor já morto ao bafo da promiscuidade, onde o respeito pelos maiores da criança, que os acotovelou e espreitou no cubículo comum e ali lhes presenciou actos e gestos dos mais íntimos? Hábitos de ordem e de asseio serão mais estranhos ião que se avezou a um casebre acanhado e fétido; entenderá mal o instituto da propriedade esse que lhe conheceu os abusos na renda extorsiva duma barraca miserável; certamente descrerá da solidariedade dos seus semelhantes o que não teve tecto, tanto como o que passou fome!
Com razão pôde um pensador inglês, aliás notável pelo conservantisimo equilibrado dos seus conceitos, escrever ultimamente que as más casas ameaçam anais a vida dum povo que as próprias bombas atómicas, porque apodrecem os corpos e aleijam almas e corações, e vão-no fazendo geração após geração, com acumulação de efeitos!
Fora de toda a dúvida, a casa é condição da felicidade presente e do aperfeiçoamento futuro de indivíduos e de sociedades. E se o objectivo último de toda a sã política é, como não deve deixar de ser, o bem-estar social, físico e mental da comunidade que serve, a provisão de moradas suficientes torna-se, tanto como a criação das possibilidades de nelas se viver, obrigação indeclinável de toda a política digna, e deve, portanto, constituir preocupação primacial de qualquer bom governo.
Salazar o confirmou - vai fazer dezoito anos - quando na Bolsa do Porto disse que o seu voto de que frutificasse a experiência das casas económicas não era somente a expressão de um desejo, mas a de um pensamento de governo!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Moradas suficientes pedi eu. Ora acontece que o problema da habitação pobre, a começo principalmente tratado e olhado cá e em todo o mundo da nossa civilização como problema de qualidade, vista a sua importância cada vez melhor reconhecida como elemento basilar da vida das pessoas e do desenvolvimento dos povos, entrou de agravar-se com o acentuamento da crise numérica de carência, da falta absoluta de casas boas ou mas.
Casas salubres, independentes, ajeitadas, casas melhores para os mal alojados, sim, quantas possam ser; mas, acima de tudo, casas para os que as sofreriam quaisquer e nenhumas encontram, eis o clamor do dia. Ao problema da qualidade sobrepôs-se e ganha em urgência o da quantidade, no sentido do suprimento das carências totais, é no que há primeiro que procurar a suficiência. O resto, nesta crise, já parece bastar que venha por acréscimo. E virá. Alivie-se a pressão da procura e as casas más hão-de melhorar ou, pelo menos, baratear.
Crise de qualidade e de número, ela é universal. De há um século a esta parte se esforçam os governos de certos países e pouco a pouco todos os demais entraram de os seguir e incessantemente lhes recrudescem as necessidades e têm de tomar por caminhos novos ou prosseguir nos que já trilhavam com ânimo redobrado. São as gentes que aumentam, as circunstâncias que atrasam, os requisitos que se aperfeiçoam, a diligência privada que entibia ou se demite: a vida, enfim, jamais saciada nas exigências e sempre renovada em trabalhos. Escapos ou não das destruições da guerra, no velho e no novo mundo, todos os povos se queixam e exibem situações lastimosas.
Isto vem para dizer, pois não quero ser entendido mal ou demais, que o caso português, com toda a sua