24 DE MARÇO DE 1953 1093
conservação das espécies e socialmente as mais proveitosas para a lavoura do mar?
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Não teremos confundido em demasia as soluções dadas até ao presente ao problema das carnes com os interesses dos matadouros e dos importadores de carne congelada, dando de bom grado aos grandes produtores estrangeiros o que impoliticamente regateamos aos pequenos criadores nacionais, constituintes da nossa extensa ruralidade?
São apenas alguns problemas cuja visão permitirá à Assembleia avaliar do alto interesse que pode atingir o julgamento político da acção económico-financeira exercida pelas actividades e serviços oficiais do Estado. Não creio que seja menor o interesse da análise da justiça distributiva com que têm sido e vão ser feitos os largos dispêndios destinados aos planos de fomento e sobre os quais serão de exigir pormenorizadas informações.
Ninguém por certo contestará que o Estado possa despender justamente centenas de milhares de contos a valorizar a produção e o rendimento desta ou daquela região; mas poderá estranhar-se que os beneficiários dessas melhorias se vão escapando à acção da justiça fiscal sobre as mais valias, reclamando ainda novas melhorias pagas por todos os contribuintes, inclusive pelos de outras regiões, que foram forçados a ver apodrecer nos armazéns ou celeiros o único produto que. constituía o remédio das suas insuficientes economias familiares! Será esta a melhor forma de proteger e defender a nossa ruralidade nacional?
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Não desejava fatigar a Assembleia, mas há ainda um último aspecto que julgo do maior interesse e da mais flagrante actualidade dentro do tema das minhas considerações. Quero referir-me aos reflexos da vida internacional nas finanças públicas e na acção económico-financeira do próprio Estado.
Não há nação, grande ou pequena, que possa fugir a manter relações comerciais com outros povos; e os problemas dos pagamentos a efectuar ou dos créditos a transferir que essas relações suscitam ou impõem constituem nesta hora um verdadeiro pesadelo para todos os homens públicos, e por isso também são origem de gravíssimas responsabilidades para os organismos e serviços aos quais neste terreno se encontram atribuídas especiais funções de vigilância e defesa da economia nacional.
E não parece justificável que toda esta actividade pública possa ser excluída do julgamento político das contas públicas cometido a esta Assembleia, tanto mais quanto é certo ser no terreno internacional que nesta hora se concentram e encontram forças temerosas que pretendem actuar, não apenas na vida económica, mas nas mesmas estruturas sociais e políticas das nações, tendo como último fito os fundamentos da própria civilização, que põem em crise.
Mas, apesar da gravidade e da violência, de que essas forças são capazes, apresentam-se apenas sob a feição de correntes financeiras ou económicas, que fazem depender a sorte da Humanidade da adopção de um colectivismo financeiro-económico, que entregará nas mãos de unia burocracia omnipotente todas as fontes da riqueza pública e da economia particular, ou da adopção de um neocapitalismo, apostado em confiar a grandes empresas anónimas a exploração comunitária das mesmas fontes e meios de produção.
Como faz notar um notável professor de Finanças, não há entre estas duas correntes um antagonismo ideológico profundo, mas apenas aparente; ambas acabam por negar o direito de propriedade individual e valor social das suas iniciativas, apenas com esta diferença: enquanto uma faz a sua negação aberta e confisco forçado, a outra pretende conservar o actual código jurídico da propriedade, mas esvaziando as fórmulas do seu sentido e os direitos da sua substância real; e - coisa curiosa ! - ambas as correntes se afirmam defensoras da democracia popular e hostis à doutrina inspiradora da actual situação política portuguesa, que acusam de autoritária e totalitarista, tanto no domínio político como aio económico.
Considerando apenas o aspecto económico, que neste debate particularmente nos interessa, ousarei dizer que os perigos e ameaças que a falsa sedução dessas correntes nos pode trazer, e contra os quais o julgamento político desta Assembleia carece de estar vigilante, não são de recear dos excessos de uma autoridade forte, mas sim das possíveis tolerâncias ou transigências de uma autoridade pública enfraquecida, e por isso incapaz de chamar à realidade dos verdadeiros interesses sociais da Nação os feudalismos argentários que pretendam esquecê-los ou sobrepor-se a eles, ou incapaz, por outro lado, de submeter e disciplinar as ditaduras difusas que possam instalar-se em olímpicas e arbitrárias burocracias.
Ao ler há poucos dias na revista francesa Lês Anales do mês corrente a crítica feita pelo ilustre académico Duhamel à desumanização e tirânico arbítrio dos sectores burocráticos franceses, compreendi como estes podem medrar tanto mais fàcilmente quanto maior for a deficiência da autoridade do Poder Público, ao qual incumbe a defesa dos econòmicamente débeis e dos socialmente mais desamparados, contra as pletóricas burocracias, capazes de esquecer ou de perverter a nobre função de serviços públicos... ou a favor do público.
E aqueles que, seduzidos pela utopia do igualitarismo económico, se derem ao cuidado de observar como ele se pratica no seio do colectivismo russo encontrarão o mais torpe desmentido nos tirânicos burocratas que na economia soviética ocupam o lugar dos omnipotentes empresários capitalistas e uma pirâmide de remunerações que nada fica a dever à acumulação de vencimentos que o nosso texto constitucional condena, como oposta à justiça distributiva e ao equilíbrio social de uma sã economia.
O perigo do estatismo difuso, acalentado pelo enfraquecimento da autoridade do Poder Público, c, aliás, característico de todos os períodos de decomposição social e de todas as crises de civilização.
Lembrarei apenas o que a história nos conta do acontecido com o desmoronar da autoridade pública no IV e V séculos do Baixo Império Romano.
Uma burocracia arbitrária e violenta não tardou a apoderar-se das parcelas do Poder.
E os próprios imperadores Valentiniano e Teodósio consentiram na criação dos defensoris civitatis, cuja missão era defender a plebe dos abusos intoleráveis dos sectores burocráticos, que a enfraquecida autoridade imperial já não podia conter. Pois, Sr. Presidente, se a história viesse a repetir-se, pelo enfraquecimento da autoridade do Estado ou das suas funções defensivas dos verdadeiros interesses sociais, possam nesta Assembleia erguer-se novos defensoris civitatis, capazes de cooperar com o Poder Público na defesa da autoridade necessária, das liberdades possíveis e das justas regalias cívicas, económicas e sociais, em que reside afinal o verdadeiro bem comum das nações.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.