126 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 68
Assim, o imposto tão indiferente parecia aos desaires e prejuízos como alheio ao sobretudo, com excepção dos ganhos excepcionais de guerra. Nas más horas como nas boas o imposto ignorava a marcha geral dos réditos.
Crises e prejuízos, esterilidades e más colheitas, abundâncias inesperadas e grandes escassezes, o tributo as deixava no rol do esquecimento como se foram realidades estranhas e ele tivesse olhos vendados para o que todos viam.
Éramos assim um oásis no mundo ocidental, aferrados à comodidade e liberdade do contribuinte e professando estranhas delicadezas por parte do Estado e dos seus agentes, mas cujas vantagens não vale a pena encarecer.
Chocados pela sua consciência alta das coisas, que em certo prisma era padrão de injustiça, os especialistas, os governantes, os burocratas e os técnicos, arrastados pela tecnicidade, talvez pela deformação profissional, mas decerto pela vontade de acertar e servir, acantonavam-se na regulamentação e, nesta estranha farmacopeia, procuravam encontrar remédios para o que não estava nem parecia bem.
Viveu-se então no regime de circulares extravagantes, de lei e contralei, e foi preciso mesmo mandar ceifar esta nova messe de intrincadas ordenações.
Apontavam-se então pelo dedo os cultores de direito; como tantas vezes acontece, a casuística, o praxismo, a sofisticação legalista, valiam mais que a lei e os contribuintes debatiam-se na incerteza, nas discussões geradoras de inéditos atritos e nunca despidos de ameaça.
Era perfeitamente o estado antagónico aos claros e insofismáveis objectivos do legislador de 1929.
Havia mais - a sociedade anónima e por quotas não digo que tomasse couta do País, mas proliferara de tal maneira que o seu predomínio parecia inabalável.
Saía um homem dos confins das províncias do Sul ou das grandes Beiras com um cento ou dois de contos, acampava por aqui, pela Baixa pombalina, e, passados anos, girava com milhares e milhões, ditando também as suas leis.
Reservas ocultas, partes de fundador, créditos sonegados em sociedade, de dezenas de milhares, decisões abusivas, sociedades de fornecimentos, vales de antecipações, causaram gravíssimos prejuízos ao Tesouro por omissão ou fraude, tornaram iníqua a distribuição dos impostos, desfavorecendo os sérios, premiando os espertos, que sorriram do rigor redobrado das leis fiscais, não direi generosas, mas construídas sob o signo da reserva e da moderação, sob o signo de que o contribuinte seria poupado a rigores e intromissões na sua casa e nos seus negócios.
Assim foram criadas, de harmonia com a Lei de Meios para 1951, aqui estudada, explicada e servida com dados imparciais, duas comissões de estudo e reforma - a Comissão de Estudo e Aperfeiçoamento do Direito Fiscal e a Comissão de Técnica Fiscal.
A primeira - a de Direito Fiscal - tinha por missão compilar os textos, simplificar as regras e disposições, adoptá-las às circunstâncias e inovar o bastante para sistematizar de novo.
Composta de professores, especialistas, jurisconsultos e altos funcionários, a sua missão ostentava-se de elevado nível e de desmesurado alcance.
Teria de estabelecer, para jogar com ela, uma concepção rasgada e portuguesa capaz de abarcar os movimentos do rendimento e que atingisse também o capital e o enriquecimento.
Teria de adaptar a pressão fiscal à composição e distribuição do rendimento nacional, tarefa tanto mais difícil quanto é certo dispormos de estatísticas e conhecimentos fiscais incompletos.
Haveria que simplificar e recorrer a modalidades e processos de maior singeleza, sem deixarem de ser vigorosos.
Proporia medidas para se corrigirem os erros e desvios e alcançar-se uma distribuição equitativa.
Coordenaria a luta contra as distorções, a fraude, a evasão, que são o romance do fisco e onde não faltam os espertos e os malévolos cultores aprimorados da malícia legal.
A segunda - a de Técnica Fiscal - publicaria metodicamente os textos únicos que codificariam rapidamente a matéria, proporia fórmulas simples e eficientes de liquidação e cobrança e organizaria rapidamente o conhecimento único das contribuições directas para que o contribuinte pagasse no momento mais cómodo, o Tesouro não fosse abastecido nas pletoras de certas épocas e os papeluchos fossem substituídos por um cartão digno que contivesse ainda para consulta o essencial da fiscalização.
Empreendia-se para logo a mecanização dos serviços das direcções com o petrechal aperfeiçoado e por meio de experiências adequadas.
Presto aqui a minha homenagem aos trabalhos, enfados, buscas e estudos das comissões, onde ascendiam os nomes de dois notáveis especialistas - Teixeira Ribeiro e Fernando Seabra -, ambos professores universitários de raro quilate; especialistas, escritores do ramo como o Prof. Fortuna, o Dr. Adolfo Bravo e Oliveira Santos; directores de finanças de alta craveira profissional como Fernando Pena, Pinho, Bastos e Silva, Cardeiro e outros.
Como sempre sucede, os comissionados, já presos pela exclusividade das suas profissões, tinham longos deveres a cumprir.
Encontravam-se num terreno árduo e desprovidos de trabalhos, a não ser os elementos coleccionados pela Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, Inspecção-Geral de Finanças e Instituto Geográfico e Cadastral.
Ao ensaiar os primeiros passos começou logo a ver-se o labirinto de Creta.
Também, contrariamente ao que aconteceu com certas comissões do II Plano de Fomento, de revisão ao Código Civil e de estudos económicos, o Ministério, nas suas malhas tradicionais tão avaras, porque eram mais que severas, cortou sem querer as facilidades apropriadas a tão magna e desconcertante tarefa.
Puderam fazer-se ainda duas ou três missões ao estrangeiro e a Inspecção-Geral de Finanças apresentou trabalho apreciável quanto ao conhecimento único.
Não ficaram por aqui os obstáculos.
Porquanto a actividade das comissões foi perturbada profundamente e até alterada pela erupção, durante o período de estudos e de trabalhos, de um novo corpo de doutrina, a escola do crescimento económico, a qual, pelas suas predominantes exigências em escala iususpeitada, se apossou dos intuitos reformadores, substituindo-lhes novas preocupações e princípios e alçando em vez das práticas correntes acreditadas outras técnicas conhecidas mas que pareciam relegadas de vez.
Foi dado ver que à primazia jurídica e distributiva do imposto directo se substituíram, sob a bandeira o rendimento consumido, os impostos indirectos sobre as transacções.
O empréstimo foi considerado um meio tão capacitado como o imposto e levado para limites inverosímeis, admitido até como uma corrente sem fim.
A estabilidade financeira interna, dada de barato como velharia ou como aspereza desnecessária, cedeu o seu lugar aos propugnadores do déficit sistemático ou aos técnicos do desequilíbrio funcional.