1528 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 83
sáveis condições de salubridade, mal social origem de muitos outros males sociais, se é possível apresentar uma obra que se traduz no erguer de milhares de habitações, ainda não as bastantes, mas já um esforço sério de alguns sectores públicos, a que falta apenas a unidade de uma política?
O venerando Chefe do Estado, com a sensibilidade do seu coração e o profundo conhecimento dos problemas nacionais, não há ainda muitas semanas pronunciou palavras cuja realidade pesa na nossa consciência:
Só lamento que muita gente viva mal entre nós, sem dispor de lar condigno e sem a instrução e a educação que todo o ser humano deve possuir para se tornar um elemento de maior validade da sociedade
Estas simples e claras palavras contém um sentido construtivo de que não andaria certamente afastado o pensamento nas «ilhas» miseráveis do Porto e nos novos bairros que as substituem, obra gerada em clima de verdade, sem o qual não teria sido possível modificar as tradicionais estruturais administrativas, dominadas pela rotina e sem meios para acompanharem o indispensável desenvolvimento regional.
A existência dos bairros de miséria, sobretudo das famosas, tristemente famosas «ilhas», era nódoa que manchava a cidade do Porto. E certo que todas as grandes cidades os, têm, sob nomes e aspectos diversos, desde os bairros de lata e os bidonvilles, as favelas e as fumas, às colmeias de Moscovo e aos bairros segregados da rica América, condenados todos eles a desaparecer e a reaparecer, quais tonéis de Danaides da civilização industrial.
Mas a verdade é que, se a Torre dos Clérigos constitui o ex-libris da cidade e o vinho do Porto o seu melhor cartaz de propaganda, as «ilhas» estavam ligadas à sua vida urbana e social como estigma indelével traçado na sensibilidade dos seus habitantes.
O mal era extenso e não faltou durante longos anos, que vêm do século passado, quem o denunciasse e propusesse para o debelar as convenientes -e inconvenientes - terapêuticas que as vicissitudes das políticas e a inércia ou incapacidade da Administração nunca puderam aplicar, pelo menos na medida suficiente para a sua cura.
O grande higienista que foi Ricardo Jorge escrevia em 1899, quase 60 anos antes do início do plano de melhoramentos para a extinção dos bairros insalubres do Porto, na sua obra Demografia e Higiene da Cidade do Porto, que encontrara na pai te central da cidade nada menos que 1048 «ilhas», com 11 129 habitações Pois, em 1929 um relatório apresentado à Câmara Municipal pela Inspecção de Saúde registava 1301 «ilhas», com 14 676 fogos e 50 000 pessoas. Dez anos depois, a situação não se modificara sensivelmente, pois a própria Câmara, presidida pelo saudoso Prof Mendes Correia, que foi membro saliente desta Assembleia, considerava a existência de 45 000 pessoas vivendo em 13 000 casas de 1157 «ilhas» como uma situação que não poderia continuar a tolerar-se Finalmente, segundo informações enviadas, a meu pedido, pelo Ministério do Interior, existiam no Porto no início da execução do referido plano de melhoramentos, em 1957, 12 134 casas de «ilhas», das quais presentemente já foram demolidas mais de metade e algumas centenas de outras receberam beneficiações, por se reconhecer que poderiam continuar a ser habitadas.
Injustiça seria não pôr em relevo a acção notável da benemérita Liga Portuguesa de Profilaxia Social na campanha obstinadamente mantida durante anos para denunciar por todas as formas ao seu alcance e com singular coragem esse cancro social que eram as «ilhas» do Porto. De tudo a Liga lançou mão para despertar a consciência adormecida dos responsáveis Foram exposições, artigos de jornal e reportagens, inquéritos e estudos que por vezes encontravam eco e produziam soluções parciais, inadequadas à grandeza da tarefa, que exigia espíritos esclarecidos paia abranger a panorâmica da obra e vontades fortes para a executarem.
Hoje já não se poderá dizer, felizmente, o que o jornalista Adelino Mendes escrevera em 1930 a propósito do Porto e das suas «ilhas», que «esse direito à casa, um dos que mais arreigados andam na inteligência e na consciência humana, nunca foi interpretado de jamais faltar ao homem que trabalha a habitação higiénica e confortável que lhe é devida e daí essas esterqueiras em que no Porto se aglomeram para cima da 50 000 pessoas» E convidava os dirigentes do País a verem como se morre nas «ilhas» e nos bairros seculares de Miragaia e do Barredo, «a respirar por um minuto o ar que ali se respira, porque talvez então deliberem iniciar a grande obra que a raça portuguesa reclama, para não se definhar até à incurável anemia no meio de todos os inimigos que a cercam apostados em a destruir».
Mas acrescentava, com justiça, que já então, em 1930, se haviam dado alguns passos no caminho das realizações Mal podia avaliar que os passos eram bem curtos Que pena Adelino Mendes não ser agora vivo para fazer a reportagem de uma visita aos novos bairros que substituíram as negregadas «ilhas»!
A iniciativa particular, há 30 anos como agora, nunca mostrou interesse pela habitação de renda económica Salvo uma ou outra empresa industrial, mais consciente dos seus deveres sociais, nunca o capital privado se interessou por essa espécie de construção, por encontrar melhor aplicação dos seus capitais em outros sectores da habitação ou porque lhe falte o estímulo do Estado e dos municípios, através de facilidades na aquisição dos terrenos ou de ajudas fiscais suficientes, que se justificam perante a grandeza de um problema que exige a congregação de todos os recursos e esforços dos sectores público e privado.
Por sua vez, o Município portuense alguma coisa foi fazendo, mas sem coordenadas exactas para chegar à verdadeira solução, que não dispensava a cooperação do Governo.
Recordo que na sessão da Câmara Municipal do Porto em 18 de Janeiro de 1955, já lá vão doze anos, o vereador Prof Correia da Silva protestava contra a passividade dos responsáveis perante um problema que considerava uma mácula para a cidade e um desmentido aos sentimentos cristãos da solidariedade social dos governantes.
É que durante muitos anos o Porto foi apontado como a cidade cemitério, e com razão, pois os índices de mortalidade geral e infantil atingiam números verdadeiramente impressionantes. Quanto à mortalidade infantil, o Porto continua a apresentar uma das taxas mais elevadas entre os distritos do continente e das ilhas adjacentes. E, se é certo que de 1950 a 1964 essa taxa baixou de 133,8 para 82.7 por mil nados, a verdade é também que este último número excede ainda em 20 por cento a taxa média do País.
E se as causas de tal estado de coisas podem ser encontradas na deficiente cobertura da assistência materno-infantil numa cidade que chamam do trabalho, mas que por isso mesmo suporta as consequências de uma industrialização que vem do século passado e vai evoluindo muito lentamente nos seus aspectos sociais, por outro