3388 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 188
Necessitamos, de ordem e tranquilidade para trabalhar (a este condicionalismo nos habituámos, graças a Deus, há muitos anos), e trabalho não nos falta se quisermos, e queremos, que a Nação seja mais rica para que possam resolver-se muitos dos problemas que afligem a comunidade portuguesa.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Arlindo Soares: - Sr. Presidente: A minha intensa e dispersa actividade de médico rural e o desempenho de funções que uma vocação inata e o impulso da minha formação profissional me levaram a aceitar obrigam-me a percorrer diàriamente para cima de uma centena de quilómetros.
O progresso, essa força indomável, com todo o seu cortejo de benefícios e malefícios, impôs-me a necessidade de trocar a sela da montada de modesto João Semana, cuja figura muito me orgulho de representar, procurando imitá-la o melhor que posso, pela cadeira almofadada, porventura mais confortável, mas nem por isso mais sadia, do veículo automóvel. Posso assim considerar-me um usuário, já de certo vulto, das nossas estradas.
Os milhares lê quilómetros percorridos por seus leitos, nem sempre suaves, têm, como é natural, deixado na minha carne e na estrutura das viaturas, marcados de forma indeléve , os efeitos erosivos dos traumas provocados pelas irregularidades do terreno. Durante as longas horas dos percursos muitas vezes tenho pensado no esforço enorme que se fez nos últimos quarenta anos para dotar o País com a rede de estradas necessária ao progressivo aumento do tráfego, abrindo novas vias de comunicação, reparando as antigas e procurando mante-las, a todas, em estado de conservação compatível com a sua normal utilização.
Infelizmente pertenço ao rol daqueles que bem conheceram o estado caótico em que se encontravam as nossas estradas, triste e pesada herança do Estado Novo, e convivi com alguns lavradores que, vivendo nas suas proximidades, tinham sempre os bois a postos para suprir com a força animal a impotência dos motores para arrancar os veículos dos atoleiros e barrancos em que era fértil o leito daquele arremedo de rodovias.
Foi, de facto, ingente o esforço e gigantesca a obra efectuada pela Junta Autónoma de Estradas, dotando o País da óptima rede rodoviária nacional, à qual vieram juntar-se as es iradas e caminhos construídos por iniciativa das autarquias administrativas.
Podemos afirmar que houve uma época em que podíamos orgulhar-nos do estado das nossas estradas, que nos ofereciam uma segurança e comodidade que faziam a inveja dos nossos visitantes. Hoje, porém, estamos a caminhar, a passo largo, não direi para aquele estado de descalabro em que as encontrámos, mas para uma situação incompatível com as necessidades sempre crescentes do trânsito. As estradas nacionais e municipais oferecem já um aspecto indesejável, que sobretudo se acentua quando sobre das incidem os efeitos de uma invernia prolongada. É, efectivamente, após uns dias de chuva e durante eles que se tornam mais evidentes os charcos que se formam nas covas e regueiras de que estão semeadas e nos vão desconjuntando o aparelho locomotor e os órgãos das viaturas, com manifesto prejuízo para a nossa economia corpórea e para a economia nacional.
O mais curioso é que são precisamente as estradas alcatroadas, que, com evidente vantagem em muitos aspectos, substituíram as antigas estradas de macadame, que mais contribuem para a ruína dos carros e mais agressivas se nos tornam, pois que os seus buracos de bordos irregulares e cortados a pique constituem autênticas ratoeiras, conduzindo a uma seca e rude trepidação e à mais brusca e violenta agressão à mecânica do veículo.
Torna-se por isso urgente uma maior vigilância e uma melhor assistência ao estado de conservação do piso das nossas rodovias, pois, se não lhe acudirmos com presteza, a insegurança e a incomodidade serão dentro em pouco flagelo insuportável e cada vez maiores os prejuízos dos utentes com o desgaste do material rolante e a consequente fuga de divisas para a aquisição de veículos e acessórios necessários ao nosso parque automóvel.
O problema, porém, parece estar a tomar uma feição bastante difícil para que possa prever-se uma solução imediata ou tão rápida quanto seria para desejar, pois tudo se congrega para o tornar mais complicado. É cada vez mais intenso o tráfego e maior a tonelagem que as estradas têm de suportar e por isso cada vez maior o desgaste sofrido; por sua vez, escasseiam, também cada vez mais, os braços empregados na sua conservação. Os cantoneiros, esses mártires da estrada, como os classificava há tempos o Jornal do Noticias, desertam, procurando noutras actividades o pão que lhes falta em casa para seu sustento e dos seus familiares.
Na verdade, é perfeitamente inconcebível o que se passa com estes beneméritos servidores do Estado e das câmaras municipais, que, abnegadamente, foram durante anos, e são-no ainda os poucos que restam, como diz aquele grande e simpático periódico pela pena brilhante do seu redactor Fernando Martins, «heróis anónimos e desprezados, homens a quem tanto se obriga e aos quais tão pouco se dá em troca». Os seus deveres, as suas obrigações, por vezes desumanas, não estão de forma alguma em concordância com os direitos que lhes conferem os regulamentos em vigor. Acima destes, porém, estão o direito natural e a dignidade humana, ofendidos pela injustiça que se lhes impõe.
As atribuições dos cantoneiros e dos seus superiores imediatos - os cabos - constam de mais de uma dezena de alíneas do Regulamento das Estradas Nacionais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 36 816, de 2 de Abril de 1948, e que faz parte integrante também da Lei n.º 2037, de 19 de Agosto de 1949, e compreendem as tarefas mais variadas, desde a conservação da faixa de rodagem ao embelezamento das bermas, limpeza e conservação dos marcos, balizas, placas e sinais, ao policiamento e à ajuda obrigatória a quantos dela necessitem. São ainda fiéis depositários e responsáveis pela boa conservação de todos os artigos e materiais que o Estado lhes confia.
Há porém uma obrigação que transcende tudo quanto possa imaginar-se de cruel e que é a de «estarem presentes todos os dias úteis na estrada, sem que as chuvas ou intempéries possam ser invocadas como pretexto de ausência, e nela permanecerem durante as horas indicadas no horário em vigor», e ainda «não poderem ausentar-se dos locais de trabalho na estrada durante as horas de descanso e refeição».
Julgo não ser necessário comentar esta imposição, que não se coaduna, de forma alguma, com as normas da justiça social que felizmente vem sendo feita às classes trabalhadoras, como nos mandam os nossos deveres de cristãos.
Em troca destes pesados e injustos deveres, o que se lhes oferece? Aos cabos de cantoneiro os magros salários de 31$ ou 36$, conforme as classes (2.ª ou l.ª), acrescidos